Arquivo mensal: outubro 2007
NEUROSE E AUTO-REALIZAÇÃO
Fundamentados no texto abaixo de Karen Horney (1885-1952), podemos verificar que o ideal, moralmente falando, consistirá sempre na libertação e no cultivo das forças que levam à auto-realização, pois, inexoravelmente esta contribuirá fortemente para tornar o mundo mais humano!
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O Processo Neurótico é uma forma especial do desenvolvimento humano, mas é uma forma especialmente infeliz, por causa do desperdício de energias construtivas que implica. Difere do crescimento normal, não apenas em qualidade, porque chega a se opor a ele de muitas maneiras, numa proporção, aliás, bem maior do que se tem pensado. Sob condições favoráveis, as energias do homem convergem para a realização das suas próprias potencialidades, mas esse processo está longe de ser uniforme. De acordo com seu temperamento, as suas faculdades e propensões e as condições da sua vida pregressa e posterior o homem pode-se tornar mais dócil ou mais duro, mais cauteloso ou mais confiante, acreditar mais ou menos em si próprio, ser mais contemplativo ou mais extrovertido e desenvolver melhor ou pior as suas habilidades especiais. Entretanto, qualquer que seja o caminho seguido, serão, sempre, as suas potencialidades que ele desenvolve.
Contudo, quando um indivíduo é submetido a pressões internas, pode acontecer que ele se alheie do seu próprio eu (eu real). Dirigirá, então, a maior parte das suas energias, no sentido de se transformar num ser absolutamente perfeito (eu idealizado), por meio de um sistema rígido de normas íntimas. A imagem idealizada que faz de si próprio e o orgulho que experimenta por causa dos extraordinários predicados que (assim o sente) tem, que poderia ou deveria ter, só ficam satisfeitos com uma perfeição divina. Esta tendência do desenvolvimento neurótico atrai a nossa atenção, não apenas por causa do interesse clínico e teórico que possamos ter por fenômenos patológicos, mas, também, porque envolve um problema moral fundamental: o desejo, impulso ou obrigação moral de atingir a perfeição, que o homem experimenta. Os que estudam seriamente o problema do desenvolvimento humano não duvidam da inconveniência do orgulho ou arrogância, ou do desejo de parecer perfeito, quando motivado pelo orgulho. Há, contudo, uma grande divergência de opiniões a respeito da necessidade ou conveniência de existir um sistema disciplinar íntimo, para assegurar a conduta moral.
Aceitando que essas normas íntimas tolhem a espontaneidade do homem, não deveríamos, de acordo com o mandamento cristão (Sede perfeitos… ) procurar a perfeição? O desprezo dessas normas não seria de efeito duvidoso e, talvez, desastroso, para a vida moral e social do homem?
Não cabe, aqui, discutir todos os modos pelos quais este problema tem sido proposto e resolvido, através da história da humanidade; nem eu me sinto preparada para o fazer. Desejo, apenas, ressaltar que a resposta a ser oferecida deve-se basear na concepção que tivermos a respeito da natureza humana.
De um modo geral, há três grandes conceitos a respeito da finalidade da moral, e todos eles se baseiam em interpretações do que seja a essência da natureza humana. Se acreditarmos que o homem é, por natureza, um pecador ou um escravo de instintos primitivos (Freud), não poderemos conceber a inexistência de um grande número de controles. Então, a finalidade da moral seria domar ou superar, e não desenvolver, o status naturae (estado natural).
Por outro lado, se acreditarmos que coexistem, na natureza humana, algo essencialmente bom com algo ruim, pecaminoso ou destrutivo, o objetivo da moral será, forçosamente, diverso. A sua finalidade será, então, conseguir a vitória eventual do lado bom, aprimorado, dirigido ou apoiado pela fé, razão, vontade ou graça, segundo o conceito – religioso ou ético – dominante no caso. Mas, não se emprestará importância apenas ao combate ou supressão do mal, porque existe, também, um programa positivo a ser cumprido. E é claro que esse programa pode-se basear em qualquer espécie de auxílio sobrenatural ou num estafante ideal racional que, por si mesmo, sugere o emprego de normas íntimas, proibitivas ou repressivas.
Finalmente, o problema da moral será, ainda, diferente, se acreditarmos que há forças evolutivas, inerentes à natureza humana, que induzem o homem a realizar as suas próprias potencialidades. Esta última concepção não implica, necessariamente a ideia de que o homem seja, essencialmente, bom, porque isso suporia a existência de um conhecimento prévio do que é bom e do que é mau. Supõe, apenas, a ideia de que o homem, pela sua própria natureza e plenamente cônscio disso, luta pela sua auto-realização, e que o seu cabedal de valores se desenvolve com esse esforço. Mas, aparentemente, o homem não pode desenvolver completamente as suas potencialidades, se não for sincero para consigo próprio, se não for ativo e produtivo, e se não cooperar com os seus semelhantes; não pode-se desenvolver se mergulhar numa profunda idolatria do ego (Shelly), atribuindo, sempre, os seus defeitos às deficiências alheias. Somente será capaz de se desenvolver, no verdadeiro sentido do termo, se assumir a responsabilidade dos seus atos.
Chegamos, assim, a uma MORAL DA EVOLUÇÃO, em que o critério para decidirmos a respeito do que devemos cultivar ou rejeitar em nós próprios, reside na resposta à seguinte pergunta: Esta atitude, ou este impulso, será favorável ou desfavorável para o meu desenvolvimento? As neuroses, frequentemente, demonstram que toda e qualquer espécie de pressão pode desviar as nossas energias construtivas para canais inertes ou destrutivos. Entretanto, mesmo acreditando na existência desse impulso autônomo para a auto-realização, não necessitamos de uma camisa de força, para tolher a nossa espontaneidade, nem do látego dos ditames internos, para nos conduzir à perfeição. Não há dúvida de que tais métodos repressivos podem suprimir, com êxito, os fatores indesejáveis, mas também é claro que eles são maléficos para o nosso desenvolvimento. Não necessitamos deles, porque divisamos um método melhor para lidar com as nossas forças destrutivas internas: SUPERÁ-LAS. Mas, para isso, é necessário que tenhamos uma consciência e uma compreensão melhores, a respeito de nós próprios. Contudo, conhecer-nos a nós próprios não é um fim em si; é, antes, um meio de conseguirmos a libertação das forças do crescimento espontâneo.
Nesse sentido, trabalharmos para o nosso desenvolvimento não é, apenas, uma precípua obrigação moral; é, ao mesmo tempo, e de um modo bem real, o nosso maior privilégio moral. Levar a sério o nosso desenvolvimento depende, apenas, de querermos proceder assim. E, à medida que perdemos a obsessão neurótica do eu, à medida que nos tornamos livres para nos desenvolver, também nos tornamos livres para amar ao próximo e para nos preocuparmos com os outros.
Sendo assim, é conveniente que os indivíduos, na INFÂNCIA, tenham todas as oportunidades possíveis para um desenvolvimento livre; e nós devemos ajudá-los, de todos os modos possíveis, a se conhecerem e a se compreenderem, quando se virem tolhidos no seu desenvolvimento.
O ideal, para nós e para os outros, consistirá, sempre, na libertação e no cultivo das forças que levam à AUTO-REALIZAÇÃO
Fontepesquisada:
NEUROSE E DESENVOLVIMENTO HUMANO. AUTOR: KAREN HORNEY.
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REALISMO E POSITIVISMO
(http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/)
Aqui, postamos texto, na íntegra, de Oswaldo Pessoa Jr., retirado de seu livro Conceitos de FÍSICA QUÂNTICA. Tomamos a liberdade de fazer alguns grifos e apresentar o texto com algumas modificações que em nada prejudica a sua originalidade.
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A realidade ao nível atômico é segundo um novo paradigma dado pela MECÂNICA QUÂNTICA: na “interpretação de Copenhagen”, mesmo a oposição tradicional entre idealismo e realismo não pode mais ser empregada e as teorias tradicionais do conhecimento fracassam. Então, de acordo com as conclusões de HEISENBERG – defensor genial da ortodoxia quântica – qualquer modelo explanatório que possamos construir da realidade só pode ter a finalidade duma melhor compreensão, representando apenas uma especulação. Os processos que se verificam no tempo e no espaço de nosso ambiente diário são propriamente o real e deles é feita a realidade de nossa vida concreta. Entretanto, “quando se tenta, diz Heisenberg, penetrar nos pormenores dos processos atômicos que se ocultam atrás desta realidade, os contornos do mundo objeto – real se dissolvem não nas névoas de uma nova imagem obscura da realidade, mas na clareza diáfana de uma matemática que conecta o possível (e não o “factual”) por meio de suas leis” (BECKER, 1965).
Werner Heisenberg, portanto, ao aperfeiçoar o chamado cálculo matricial sobre bases estritamente probabilísticas, tornou possível reduzir a matéria ao mero cálculo matemático. Assim, pela primeira vez a IMAGEM é varrida por completo da Física. Com o cálculo de matrizes a matéria já não é partícula nem onda nem nenhuma outra coisa susceptível de descrição, mas aquilo que cumpre um puro esquema matemático regido pelos PRINCÍPIOS DE SIMETRIA.
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1. Realismo em Geral
Você é um realista? Distingamos primeiramente um sentido “ontológico” (relativo às essências das coisas, ao “ser” das coisas) e um sentido “epistemológico” (relativo ao conhecimento). O realismo ontológico é a tese de que existe uma realidade lá fora que é independente de nossa mente (ou de qualquer mente), de nossa observação. A negação desta tese é chamada de idealismo, que pode assumir várias formas, conforme veremos. O realismo epistemológico afirma que é possível conhecer esta realidade, ou seja, que nossa teoria científica também se aplica para a realidade não observada.[94] Exploraremos inicialmente essas teses no nível do conhecimento individual, para depois analisarmos a forma que o realismo epistemológico assume quando consideramos o conhecimento científico – o chamado de realismo científico.
Para começar, devemos salientar que o termo “realismo” tem mudado de significado ao longo da história. Na filosofia medieval, o realismo era a tese de que os universais (“a árvore”, “a cadeira”, “o homem”) existem antes das coisas particulares, tese esta que estava associada à filosofia de Platão. A esta posição se opunha o nominalismo, segundo o qual os universais são meros nomes, e a realidade só se refere ao particular do mundo físico atual (Guilherme de Occam, século XIV).
No século XIX o termo “realismo” surgiu principalmente nas artes como reação ao romantismo. Este último apresentava uma atitude holística, orgânica, intuitiva, idealizadora, que em ciência influenciou a Naturphilosophie (início do século: Goethe, Schelling, Oersted). A reação realista nas artes realçava o cotidiano e o social, tendendo a ser politicamente mais progressista.
Na ciência, o realismo estava associado ao mecanicismo e ao atomismo, com uma valorização da quantificação e do método hipotético-dedutivo.[95] Ele se contrapunha ao positivismo, originado com A. Comte e defendido por E. Mach e energeticistas como W. Ostwald. Para o positivismo, qualquer especulação sobre mecanismos ocultos deve ser evitado. Só tem sentido tecer afirmações sobre o que é observável, verificável. Uma sentença “sem sentido” é aquela para a qual não há um método para verificar se ela é verdadeira ou falsa. Por exemplo, a frase “a realidade física existiria mesmo que não existisse nenhum observador” seria sem sentido. Para o realista, porém, tal frase não só tem sentido como é verdadeira.
No século XX, a questão de como fundamentar o uso da matemática na ciência levou ao “positivismo lógico” (Viena: M. Schlick, R. Carnap) e “empirismo lógico” (Berlim: H. Reichenbach). Formas abrandadas dessas correntes tiveram bastante força até o início da década de 1960, na filosofia da ciência. Na década de 50, iniciou-se uma reação contra o positivismo lógico, centrando-se fogo especialmente no seu “empirismo”, tese de que as observações são bases seguras para construir a ciência (K. Popper, W. Quine). Por um lado, autores “relativistas” (M. Polanyi, N. R. Hanson, P. Feyerabend, T. Kuhn) atacaram a ênfase excessiva na descrição lógica da ciência, salientando que o conhecimento tem um componente intuitivo, e que ele está sujeito às circunstâncias históricas e sociais. De outro lado, a corrente do “realismo científico” (G. Maxwell, H. Putnam) foi elaborada, e tentaremos esboçá-la adiante.
Em outros campos, fora da filosofia da ciência, o “positivismo” foi também bastante atacado, tendo-se tornado até um termo depreciativo. Este sentido negativo parece ter surgido com as teorias positivistas em Ciências Humanas (inclusive na Educação), como o “behaviorismo” em Psicologia, que simplifica ao máximo a representação que se tem do ser humano, focalizando seu estudo apenas na relação entre estímulo e resposta (os dados “positivos”).[96] Tal abordagem pode ser usada para se justificar a manipulação e dominação de homens por outros homens, tendo sido bastante criticada, como por exemplo pela Escola de Frankfurt (T. Adorno, J. Habermas, etc). Salientemos então o seguinte: no presente estudo, iremos nos concentrar na discussão entre formas de realismo e anti-realismo nas Ciências Naturais, onde “positivismo” não é necessariamente um termo depreciativo.
2. Os Problemas do Conhecimento
Um ponto crucial para entender as diferentes formas do anti-realismo, ou o que significam os diferentes “ismos” filosóficos, é considerar o tipo de pergunta que cada um responde. Adaptaremos aqui as análises feitas pelo filósofo alemão Johannes Hessen e pelo filosófo da ciência finlandês Ilkka Niiniluoto.[97]
Consideremos primeiramente o problema ontológico da existência de uma realidade independente do sujeito ou de uma mente. Já mencionamos que o realismo ontológico afirma a existência desta realidade; a negação desta tese recairia em um “idealismo ontológico”, que é mais conhecido como idealismo subjetivista. A forma mais radical desta é o “solpsismo”, segundo o qual a realidade se resume ao conteúdo do meu pensamento: a realidade seria uma espécie de sonho em minha mente. Uma forma menos radical é a doutrina do “esse est percipi” (Berkeley, séc. XVIII), segundo a qual só existe aquilo que é percebido por alguém. Berkeley termina por defender um idealismo objetivo, porque a realidade externa existiria enquanto atividade mental de Deus. Tal idealismo é consistente com o realismo ontológico. Vemos assim que o idealismo não surge apenas como negação do realismo ontológico. Um idealismo epistemológico [98] (que negaria o realismo epistemológico) defenderia a impossibilidade de se conhecer entidades independentes de qualquer sujeito cognoscente.
Podemos aceitar a existência de uma realidade exterior e colocar o problema epistemológico que Hessen chama de problema da “essencia do conhecimento”: é o objeto que determina o sujeito (realismo), ou é o sujeito que determina o objeto do conhecimento (idealismo)? O idealismo transcendental daquele que é considerado o mais importante filósofo moderno, o alemão Immanuel Kant (séc. XVIII), adota uma posição intermediária: aceitar a existência de coisas-em-si (“noumeno”), mas considera que a existência só tem acesso às coisas-para-nós, os “fenômenos”. Tais fenômenos, porém, seriam organizados pelo nosso aparelho perceptivo e cognitivo, sendo assim em parte dependentes do sujeito (isso também é defendido pelo idealismo conceitual de N. Rescher, 1973). A causalidade, por exemplo, não existiria na realidade, mas seria uma “categoria do entendimento”, uma estrutura cognitiva sem a qual a própria compreensão do mundo seria impossível.
No outro extremo, um tipo importante de realismo é o materialismo, para o qual apenas a matéria (e energia) existe ou é real: processos mentais seriam “epifenômenos” causados por processos materiais. O marxismo, uma forma de materialismo, considera que as ações humanas são determinadas pelos aspectos econômicos.
Consideremos agora um outro problema epistemológico, que é o da “possibilidade do conhecimento”: pode o sujeito apreendr o objeto, pode ele conhecer verdades a respeito do mundo? Diferentes formas de realismo afirmam que sim, enquanto que a negação desta tese se chama ceticismo. Dentre as atitudes intermediárias podemos mencionar o pragmatismo (séc. XIX: C. S. Peirce, W. James), que leva em conta apenas as conseqüências práticas das idéias, e que é uma forma de relativismo. O relativismo considera que nosso conhecimento e as verdades dependem do contexto psicológico e social no qual nos encontramos.
Por fim, consideremos o problema da “origem do conhecimento”: é a razão ou é a experiência a fonte e a base do conhecimento humano? O empirismo considera que a única fonte de conhecimento é a experiência. Conhecimento sobre o que existe não pode ser obtido de maneira “a priori”. Os significados das idéias seriam redutíveis aos dados da experiência (séc. XVII-XVIII: F. Bacon, J. Locke, D. Hume). O sensacionismo (em inglês: “sensationalism”) ou “emprirismo radical” enfatiza que as idéias são redutíveis às sensações (sense data), e no final do séc. XIX esta posição foi defendida pelo “empirio-criticismo” de Ernst Mach. A posição de Mach também é considerada uma forma de idealismo subjetivista, devido à tese de que “o mundo consiste apenas de sensações”. Uma forma mais pragmática de emprirismo é o fisicalismo, para o qual os termos descritivos da linguagem se referem a objetos físicos (não sensações) e suas propriedades, e são definidos “operacionalmente”. Para o operacionismo (década de 1920: P. Bridgman), todo conceito científico é sinônimo do conjunto de operações físicas associados ao processo de medi-lo.
O ponto de vista oposto ao empirismo é o racionalismo (ou melhor, intelectualismo), que defende que o critério de verdade não é sensorial mas intelectual e dedutivo (R. Descartes, séc. XVII). Verdades básicas são evidentes para a razão, e outras verdades são dedutíveis destas. A posição de Kant pode ser considerada intermediária entre o empirismo e o racionalismo.
Para finalizar, salientemos que o positivismo não envolve uma tese única, mas consiste de quatro afirmações principais [98 a]: (i) Descritivismo: só faz sentido atribuir realidade ao que for possível descrever, observar. (ii) Demarcação: teses científicas são claramente distinguidas de teses metafísicas e religiosas, por se basearem em “dados positivos” (são verificáveis). (iii) Neutralidade: o conhecimento científico deve ser separado de questões de aplicação de valores. (iv) Unidade da ciência: todas as ciências têm um método único, baseado no empirismo e na indução.
3. O Realismo Científico
Agora nos concentraremos na interpretação realista de uma teoria física, que inclui três afirmações básicas: 1) Realismo ontológico: existe uma realidade física que independe do conhecimento e da percepção humana. 2) Realismo científico: As proposições de uma teoria têm “valor de verdade”, isto é, são ou verdadeiras ou falsas, de acordo com a teoria da verdade por correspondência. Assim, uma teoria física serve para “explicar” fenômenos em termos da realidade física subjacente, e não apenas para prevê-los. 3) Realidade dos termos teóricos: a teoria pode conter “termos teóricos” que se referem a entidades físicas que não são diretamente observadas.
Além dessas características, costuma-se adicionar mais três afirmações para uma interpretação realista [99]: 4) Realismo metodológico: atingir a verdade é a meta principal da ciência. 5) Realismo convergente (K. Popper): as teorias físicas se aproximam cada vez mais da verdade, sem talvez nunca atingi-la de maneira completa. 6) Inferência para a melhor explicação: a melhor explicação para o sucesso prático da ciência é a suposição de que as teorias científicas são de fato aproximadamente verdadeiras.
A negação de uma ou outra das teses expostas acima constitui formas de anti-realismo, no contexto de teorias científicas. O relativismo nega que existam verdades únicas a serem descobertas pela ciência (anarquismo epistemológico de P. Feyerabend), sendo tudo fruto de uma negociação no âmbito das comunidades científicas (T. Kuhn, nova sociologia da ciência). Esta concepção está por trás da “verdade pragmática” que se opõe à verdade por correspondência.[100]
Uma negação do realismo científico é também feita pelo instrumentalismo, que pode ser “forte” ou “fraco”. O instrumentalismo forte nega que as teorias científicas tenham valores de verdade, e que elas expliquem uma realidade subjacente aos dados experimentais. Teorias seriam meramente esquemas lingüísticos que permitem fazer previsões sobre observações, e que organizam estas de maneira econômica.
Já um instrumentalismo fraco não nega que sentenças teóricas (relativas a entidades não-observáveis) tenham valores de verdade, mas nega que isto tenha qualquer importância na ciência (negando a tese 4). O que seria importante seria a solução de problemas (L. Laudan) ou a adequação empírica (B. van Fraassen).
A negação da tese 3 recai no descritivismo, que está associada ao positivismo. Uma maneira de negar o realismo convergente (tese 5) é o convencionalismo, defendido na passagem do século por H. Poincaré, segundo o qual a forma particular da teoria adotada tem diversos elementos convencionais, já que outras teorias empiricamente equivalentes são possíveis.
4. Anti-Realismo na Física Quântica
O anti-realismo que está associado à Mecânica Quântica envolve pelo menos três níveis epistemológicos: i) no nível de teoria científica, o instrumentalismo afirma que a Mecânica Quântica não passa de um instrumento para fazer previsões experimentais; ii) no nível da essência do conhecimento, o idealismo afirma que a consciência humana tem um papel importante na determinação do estado do objeto; iii) no nível do significado ou da origem do conhecimento, o positivismo nega que faça sentido afirmar a existência de entidades não observáveis ou afirmar proposições não verificáveis.
Na discussão sobre realismo científico, tem-se declarado que “o realismo morreu, quem o matou foi a Física Quântica” (A. Fine, 1982). Não examinaremos em detalhes, aqui, a viabilidade das interpretações realistas da Mecânica Quântica, mas queremos apenas sublinhar que quem morreu nos anos 70 não foi o realismo em geral, mas um certo tipo que chamaremos de realismo classicista, a tese de que a realidade tem uma estrutura próxima às nossas concepções e intuições clássicas a respeito do mundo.
Relembremos três capítulos do anti-realismo na história da física quântica.
(I) O primeiro capítulo está associado à noção de complementaridade: “uma realidade independente no sentido físico ordinário não pode ser atribuída nem aos fenômenos, nem aos agentes da observação” (Bohr, 1928). Defendia-se que a teoria só trata do observável: uma realidade não-observada pode até existir mas ela não é descritível pela linguagem humana. A posição de Bohr modificou-se em 1935, e há uma controvérsia sobre o grau de positivismo ou instrumentalismo da visão de Bohr.[101] Mas mesmo após esta época manteve-se o chamado “relacionismo”, segundo o qual a realidade observada é fruto da relação entre sujeito e objeto, sendo dependente das escolhas ou vontade do observador (“voluntarismo” de von Weizsäcker).
(II) O segundo capítulo é uma forma de idealismo subjetivista associada a uma consciência legisladora. Ela surge da tese de que o colapso associado a medições só é causado pela observação humana: “a transformação irreversível no estado do objeto medido” seria devida à “faculdade de introspecção” ou ao “conhecimento imanente” que o observador consciente tem de seu próprio estado (London & Bauer, 1939). Filósofos adoram explorar os paradoxos trazidos por esta posição, como no exemplo do gato de Schrödinger, mas o consenso parece ser que tal posição radical é desnecessária (apesar de consistente). A interpretação dos estados relativos de Everett resolve problemas semelhantes sem atribuir um papel legislador à consciência, mas supondo que esta possa entrar em superposições quânticas.
(III) O terceiro capítulo do anti-realismo está associado ao trabalho de John S. Bell, que mostrou que qualquer teoria realista que satisfaça a propriedade de localidade (salvo algumas exceções) é inconsistente com a Teoria Quântica. Quem morreu com este resultado não foram as teorias realistas não-locais (como a de David Bonm), mas sim boa parte do realismo local, uma variedade de realismo classicista que defende que, na realidade, os sinais sempre se propagam com uma velocidade menor ou igual à da luz.
Alguns outros exemplos de suposições classicistas que são violadas por alguma interpretação da Teoria Quântica (além da localidade) são: determinismo, corpuscularismo (a matéria é composta de partículas), a tese de que o mundo existe em quatro dimensões, de que eventos presentes não afetam o passado, de que emissões de partículas ocorrem em instantes bem determinados, etc. Apesar do classicismo estar em geral associado ao realismo, notamos que o classicismo pode ser em boa parte adotado por abordagens positivistas, como é o caso da interpretação da complementaridade de Niels Bohr.
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ONTOLOGIA DA CIÊNCIA SEM REALISMO CIENTÍFICO
O estudo da ontologia da ciência estaria justificado mesmo se o anti-realismo se afirmasse como a concepção correta da ciência. Mesmo que tivéssemos certeza que no fundo a ciência não descreve uma realidade inobservável, ainda assim o papel heurístico do realismo continuaria valendo. Os realistas tipicamente argumentam que o realismo possui um importante papel heurístico na prática da ciência, se os cientistas não estivessem convencidos de que desbravam os segredos da natureza, a sua lide perderia o sentido. Rescher vai ainda mais longe e afirma que o realismo é mesmo uma condição necessária para a prática científica, não haveria ciência se os cientistas (e também os filósofos quando não estão filosofando) não fossem realistas. Assim, supondo que o anti-realismo vença o debate e decida a questão, ainda assim a ontologia teria um valor prático: ajudar a construir uma visão de mundo coerente baseada nas ficções da ciência.
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Notas:
[94] Na literatura mais recente de filosofia da física de lingua inglesa, é costume fazer uma distinção entre “realismo de entidade”, que seria sinônimo de realismo ontológico, e “realismo de propriedade”, que atribui exist~encia às propriedades (autovalores associados a observáveis) mesmo antes de qualquer medição.
[95] BRUSH, S. (1980): “The Chimerical Cat: Philosophy of Quantum Mechanics in Historical Perspective”, Social Studies of Science 10, 393-447.
[96] Uma história da influência do positivism de Mach tanto na Física quanto na Psicologia é apresentada por HOLTON, G. (1993), “Ernst Mach and the Fortunes of Positivism”, in Science and Anti-Science, Harvard U. Press, Cambridge, pp. 1-55.
[97] HESSEN, J. (1999), Teoria do Conhecimento, Martins Fontes, São Paulo. Original: Erkenntnistheorie, Dümmlers, Colônia, 1926. NIINILUOTO, I. (1987). “Varieties of Realism”, in LAHTI, P. & MITTELSTAEDT, P. (orgs.), Symposium on the Foundations of Modern Physics 1987, World Scientific, Cingapura, pp459-83.
[98] MEHLBERG, H. (1980), “Philosophical Interpretations of Quantum Physics”, in Mehlberg, Time, Causality, and the Quantum Theory, vol. 2 (Boston Studies in the Philosophy of Science 19), Reidel, Dordrecht, pp. 3-74. Ver p.8.
[98 a] OLDROYD, D. (1986), The Arch of Knowledge – An Introductory Study of the History of the Philosophy and Methodology of Science, Methuen, Londres, p. 169. Este autor se baseia em KOLAKOWSKI, L. (1968) , Alienation of Reason: A History of Positivist Thought, Doubleday, Garden City (original em polonês:1966).
[99] Ver NIINILUOTO, op. cit. (NOTA 97), P. 467. Ver também MURDOCH (1987), op. cit. (nota 86), pp. 200-7. Para mais sobre o realismo, consultar: LEPLIN, J. (org.) (1984), Scientific Realism, U. Of California Press, Berkeley; TOULMIN, S. (org.) (1970), Physical Reality, Harper & Row, Nova Iorque.
[100] Para uma excelente introdução à problemática da verdade, ver HAACK, S. (1998), Filosofias das Lógicas, Ed. Unesp, São Paulo, cap. 7; original: Philosophy of Logics, Cambridge U. Press, 1978. Em português, ver também: DA COSTA, N.C.A. (1997), O Conhecimento Científico, Discurso Editorial, São Paulo, cap. III.
[101] Dentre os que enfatizaram o realismo de Bohr estão Hooker (1972), Fose (1985), Honner (1987) e Murdoch (1987). Dentre os que enfatizam seu não-realismo, encontramos Fine (1986), Krips (1987) e faye (1991). Estas referências, uma introdução ao problema, e vários artigos sobre Bohr podem ser encontrados em: FAYE, J. & FOLSE, H.J. (orgs) (1994): Niels Bohr and Contemporary Philosophy, (Boston Studies in the Philosophy of Science 153), Kluwer, Dordrecht (Holanda).
Fontepesquisada:
1.Conceitos de FÍSICA QUÂNTICA, vol. I, autor Osvaldo Pessoa Jr.
2.Ontologia da ciência sem realismo científico. Acessado em: <https://almuulin.wordpress.com/2007/02/08/ontologia-da-ciencia-sem-realismo-cientifico/>.
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LACAN E O DESEJO DO DESEJO DE KOJÈVE – I
Título: LACAN E O DESEJO DO DESEJO DE KOJÈVE
LACAN AND THE DESIRE OF KOJÈVE’S DESIRE
Autor: João José Rodrigues Lima de Almeida
Titulação: Doutor em Filosofia pela UNICAMP
Área: Filosofia da Psicanálise
E-mail: limalme@uol.com.br
Resumo: Este artigo defende a tese de que o principal operador da teoria psicanalítica de Lacan é a ontologia negativa de Kojève. Isto implica as seguintes consequências: (a) sua concepção de linguagem é idealista; (b) a negatividade fornece uma explicação dessubstancializada da organização do desejo; (c) mediante a antropologia kojeviana, Lacan pode aspirar a uma cientificidade particular para a psicanálise centrada na formulação lógica de uma subjetividade sem psicologia.
Abstract: This article defends the thesis that Kojeve’s negative ontology is the leading operator in the Lacanian psychoanalytic theory. This implies the following consequences: (a) an idealist conception of language; (b) the negativity provides a desubstantialized explanation of the desire’s organization; (c) through the Kojevian anthropology Lacan could aspire to a particular scientificity for psychoanalysis centered in the logical formulation of a subjectivity without psychology.
Palavras-Chave: filosofia da psicanálise, Lacan, Kojève.
Keywords: philosophy of psychoanalysis, Lacan, Kojève.
LACAN E O DESEJO DO DESEJO DE KOJÈVE
João José R. L. Almeida
Psicanalista
Doutor em Filosofia da Psicanálise pela UNICAMP
Na teoria da linguagem do sacerdote Tzinacán, cada palavra está concatenada com todas as palavras do universo, e o universo tem todas as palavras necessárias para descrevê-lo. O cosmos é uma espécie de rede infinita que uma mente infinita pode conter de imediato na consciência. A linguagem dessa mente infinita percorre instantaneamente todos os meandros da rede. Nessa linguagem, chamemo-la de “completude”, dizer “tigre” é dizer os tigres que o engendraram, os cervos e as tartarugas que devorou, os pastos de que se alimentaram os cervos, a terra que foi mãe do pasto e o céu que deu luz à terra. Uma palavra é, ao mesmo tempo, todas. De maneira que a enunciação de apenas uma, é a própria plenitude; não de maneira implícita, mas explícita, não de modo progressivo, senão imediato. A particularidade é inecessária, posto que o falante desta língua tem presente para si o universo, nele incluídas todas as particularidades. Tampouco o bem e o mal servem para algo: assim como nos jogos de azar a quantidade de números pares e ímpares tende ao equilíbrio quando estendidos na totalidade do tempo, do mesmo modo se misturam e se anulam as virtudes e as infâmias no final da história. Encarados pelo infinito, todos os nossos atos são justos, mas também indiferentes. Que importa, portanto, um dos seres humanos? Quem já entreviu o universo, quem já presenciou todos os ardentes desígnios do universo, não pode pensar em um homem ou em uma mulher, nas suas desditas e desventuras triviais, mesmo que essa pessoa seja ela mesma. Do ponto de vista humano e particular, dizer tudo é, ao mesmo tempo, dizer nada.1
Do ponto de vista humano, e particular, se quisermos completar a parte que falta de nossa limitação lingüística para chegar à “completude”, basta preenchê-la de “nada”. Não chegaremos, certamente, à teoria da linguagem de Tzinacán, porém, mais modestamente, teremos uma forma particular de teoria idealista da linguagem negativizante, não a própria “completude” como “preenchimento”, nem como antecipação presente de uma verdade como totalidade, mas a sua forma operativa como “não-todo” ou “incompletude” cuja função é anular as particulares pretensões de plenitude pela intervenção negativizante do resto ontológico não subsumido pelas aparências abstratas. Para o idealismo, há duas alternativas: ou o mundo, e toda a sua história, é a extensão da própria Razão, e “o Real é racional”, ou a Razão estendida não se identifica mais com o que pensávamos, mas é Outra, depois de absorver a desrazão, o irracional, o inconsciente e o subjetivo que lhe faltavam.
1. Refiro-me ao conto “La escritura del Dios”, em BORGES, 1971, pp. 133-141.
O principal operador da teoria lacaniana, a hipótese de que desejo é falta, é uma concepção subsidiária da “ontologia negativa” de Alexandre Kojève. A idéia de falta, de perda, de corte, de limite, constitui a existência como tensão permanente, como luta infinita pela recuperação de um gozo definitivamente perdido. Para Lacan, o corte é ocasionado pela linguagem. Sua concepção de linguagem é idealista porque esta não se refere senão a si mesma; nada diz sobre o mundo, porque o exclui, nem sobre o sujeito, porque o subordina aos seus liames e deslocamentos. Esta característica também está presente no estruturalismo; afinal, para Lévi-Strauss, ser é estar na linguagem: “…os símbolos são mais reais que aquilo que simbolizam, o significante precede e determina o significado.”2 A diferença, entretanto, é que a concepção de linguagem de Lacan segue os parâmetros filosóficos kojevianos para comportar na estrutura a idéia de uma subjetividade.
Certamente a conceitografia de Lacan não é a mesma de Kojève. O sentido de “desejo como falta”, em Lacan, torna-se distinto porque o uso que se faz da idéia é outro. Enquanto em Kojève o conceito de desejo está vinculado a uma descrição da História como luta entre o Senhor e o Escravo, e o movimento social em sua totalidade aponta para um fim inexorável, em Lacan não há indicação de “final” nem se pretende descrever a “história”, mas o “sujeito”. A negatividade é aprofundada pelo ato da sua incorporação à psicanálise e à sua concepção de linguagem. O “desejo do desejo do outro” permanece ontologicamente dissimétrico para dar forma à impressão de um fundo patogênico. Deste modo, o sujeito, em confronto com o Outro, é uma inclusão da aniquilação do ser, da sua própria morte, do seu desaparecimento, na formação da subjetividade. Não há escapatória. No primeiro caso, a negatividade é a figura dominante que dispara o movimento histórico e a formação do ser humano como efeito da sociedade agonística; no segundo caso, é a figura absoluta e constituinte da psicologia no ambiente da “luta pelo puro prestígio”.
Como é possível chegar-se à conclusão de que a negatividade é constituinte da psicologia? Por que não pensar que a falta, o vazio ou o nada, surjam no próprio ato de desejar, no próprio exercício da subjetividade, sem separação prévia? Por que em vez de haver condicionante e condicionado, não se trataria apenas de uma constituição conjunta de duas entidades psicológicas, o desejo e o sentido de carência? Proponho duas evidências para provar o ponto. Primeiro, o argumento metafísico: enquanto o desejo pode ser interpretado, segundo o contexto, de um comportamento humano, nada pode ser interpretado do “nada” ou da “falta” como impulso do desejo. Para postular-se a existência de tais entidades, seria necessário efetuar o acréscimo de uma entidade ao comportamento. O fato de que exista uma abertura da possibilidade, de que exista uma impossibilidade de fundamento dos projetos, e de que a ação humana seja premida pela morte, não autoriza o pensamento da falta como componente organizador. O desejo não pode ser nada mais que uma produção sem fundamento, o desenrolar de uma intenção cujo projeto justifica-se apenas pelos elementos que integram a própria ação, e pelas outras ações correlacionadas, sem privilégios epistêmicos. Se não houver privilégio, não pode haver instrumento prévio, ou nada de fora da ação. O pensamento do desejo como falta, no entanto, apensa um fundamento ou elemento ao redor do qual dispõem-se ou constituem-se os demais. A diferença entre “falta a ser” e “ser em falta” é decisiva neste caso. Lacan ressalta apenas a “falta a ser”.
2.LÉVI-STRAUSS,C.,1950,p.XXXII.
Em segundo lugar, o argumento temporal: para pensar-se o desejo como falta, esta deve anteceder na sucessão o movimento da espontaneidade volitiva; ela só é originária e fundante neste sentido. Se desejo é falta, não se pode desejar sem que o vazio se instaure precedentemente; deve haver antes de tudo o sentimento de perda, pois é justamente este sentimento que provoca o movimento de recuperação e empresta sentido à idéia do desejo como falta; a “falta” é, portanto, a explicação última do fenômeno do desejo como o primeiro da série na visão retrospectiva.
Kojève concebe o ser humano no plano da luta com o outro, à maneira de uma “presença real do nada no ser” ou como um “vazio ávido de conteúdo”.3 Mas este plano relacional e bidimensional não é mais que uma fenomenologia em clave histórica e intersubjetiva. Lacan não envereda pela fenomenologia, segue os caminhos da sua concepção de linguagem, e, assim, aprofunda a negatividade constitutiva ao desdobrar outros planos de ação lingüisticamente concomitantes. Deste modo, por exemplo, concebe o desejo como ação em plano tridimensional, subdividido na tríade necessidade-demanda-desejo; enriquece a antropologia agonística de Kojève idealizando a luta entre o eu e o outro na forma dinâmica do par limite/perda: o neurótico é aquele que não quer sacrificar sua castração em favor do gozo do Outro, deixando-o servir-se dela4 (denegação da própria falta pela pretensão de suprir – e, assim, afirmar – a falta do Outro); durante a fase topológica do seu pensamento, para dar a compreender como a demanda do neurótico é o objeto do desejo do Outro, postula, numa determinada dimensão, a demanda de amor como voltas em torno do vazio, como repetições em séries de idas e vindas a percorrer a parede interna do tubo de uma câmara de ar sem conteúdo. Mas, em outra dimensão, concorrente e simultânea, faz com que o movimento circulatório e contínuo da demanda, tomado em retrospectiva, realize um contorno ao redor de um suposto objeto de satisfação desconhecido: objeto de desejo do Outro, chamado “objeto a”, ou “causa do desejo” pelo resto que falta para inteirar a completude. Do ponto de vista da outra direção, o vazio da demanda contorna o “nada fundamental” [le rien fondamental] por excelência.5
3. KOJÈVE,A., 1947, pp. 91 e p. 167.
4. LACAN,J. 1966a, p. 826.
5. LACAN,J. 1961, lição de 30/05/1962.
A diferença entre Kojève e Lacan estriba-se em que, no segundo, a negatividade constitutiva é cingida pela tridimensionalidade da linguagem mediante o postulado tético de modulações indissociáveis e cooperantes, denominados como “real”, “simbólico” e “imaginário”, e pelo fato de que a idéia de um final da história retira-se de cena. O “nada” estático fica diferente do “vazio” (se podemos fazer essa diferença), porque são “faltas” compreendidas segundo diferentes dimensões:
(1) a primeira “falta” aparece no palco da demanda, quando esta gira ao redor do vazio (e não do nada) na busca da próxima insatisfação – a insistência do significante remete o movimento de busca para o eixo do seu próprio encadeamento (o simbólico), frustrando a demanda.
(2) A segunda “falta” é fundamental e está no plano do real. Surge na falha do simbólico, ao mesmo tempo em que a impossível completude é bordejada na direção de outro eixo (o real) e dá conta de uma inevitável “castração” (“presença da ausência”).
(3) O sujeito, para Lacan, é a apreensão imaginária (ou numa fantasia de sujeito ligado a um objeto) da representação que um significante remete a outro no seu movimento de contorno do objeto metonímico do desejo; ou, em outra figura recorrente, é a superfície unilátera cujo movimento contínuo serve-se dos dois lados, e representa-se pela fita de Moebius (veja os vídeos abaixo… postados por seletinof), inscrita nos contornos do vazio e do nada dos buracos encadeados dos toros entrecruzados.6
A introdução de uma teoria da linguagem no pensamento de Lacan, a partir da incorporação do estruturalismo em 1953, recobriu a fenomenologia do desejo como falta e a transformou em ação lingüística: o sentimento de perda e o nascimento do desejo acompanham a aquisição simbólica. A linguagem tornou-se a castração. O que resta desse corte, seria, no imaginário, o que falta ao sujeito para assegurar a completude do Outro, e, no simbólico, a incompletude insanável do Outro. Desta maneira, explica-se com eficiência o desejo pela negatividade
6. A figura de dois toros entrecruzados pelo seu furo central é a ilustração a que recorre Lacan no seminário IX, da “Identificação”, para demonstrar a idéia da circulação da demanda ao longo do eixo da alma do toro, bordejando, pelo movimento circulatório, o objeto do desejo do Outro, representado pelo vão central do segundo toro. Como são dois toros entrecruzados, o objeto do desejo de um é também a demanda do outro, e vice-versa.
mediante a demanda, posto que a parte faltante exerce uma poderosa influência de atração de dentro para fora do simbólico. Neste sentido é que o inconsciente, cuja condição é a linguagem, foi definido muitas vezes como “discurso do Outro”, e uma vez como “a parte do discurso concreto, como transindividual, que falta à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade do seu discurso consciente”.7 No fundo, trata-se sempre de conceitualizar o aspecto concreto pela força negativa que vem de fora e desmancha a ordem de dentro. A teoria lacaniana consiste em várias tentativas de formalização simbólica da conjunção deste negativo fundador e suas projeções imaginárias por meio do simbólico. Como se a conceitografia pudesse dar conta simultaneamente do externo e do interno, do positivo e do negativo, do racional e do irracional, e do subjetivo e do objetivo. Os pares são concebidos como indissociáveis pela retórica idealista, pelo recurso de assumir contradições e impasses como formas naturais da existência.
O problema lingüístico de Lacan não será analisado, entretanto, neste artigo. Meu propósito resume-se apenas ao enfoque da formação do núcleo dinâmico do projeto de uma psicanálise científica centrada na idéia de uma subjetividade sem psicologia. Lacan precisou da definição kojeviana para ter uma concepção do desejo que fosse ao mesmo tempo concreta e unívoca. Essa concepção satisfaria seu ideal de ciência, porque poderia efetuar com ela a redução de todos os fenômenos psicológicos a uma só raiz objetiva: o eu em conflito com o outro. O sujeito em Lacan já não é mais o mesmo da psicologia, substancializado; tampouco é o da fenomenologia, uma consciência a projetar e produzir um sentido. O sujeito em Lacan é um postulado quase-transcendental, uma divisão imposta pela perda, um ponto evanescente, inencontrável, sem referência, existência ou realidade empírica, mas pressuposto como condição de possibilidade das ações de desejo. Formalizar teoricamente a subjetividade em conjunção com a negatividade – no que resulta uma subjetividade alienada e evanescente – tornou-se uma aquisição permanente da teoria lacaniana, no sentido de apresentar sempre, e renovadamente, alguma solução impessoal e rigorosa para fenômenos totalmente insubmissos à sintetização em termos de hipóteses necessárias e universais.
Embora a influência kojeviana não seja sequer mencionada pela maioria dos comentadores de Lacan, ou seja minimizada em outros casos,8 penso que é factível a suposição de que todas as modificações e formas que a teoria lacaniana tomou respondem, no principal, a este operador de fundo. Considerando de outra perspectiva, a idéia é que a psicanálise lacaniana não é apenas uma teoria externalista e impessoal dos fenômenos mentais ou dos fatos psicológicos; isto é, uma teoria que apenas propõe como fator causal e eficiente do comportamento um terceiro elemento, a unidade fonológica significante e seus encadeamentos formais. Mais do que isso, o que basicamente distingue o inconsciente estruturado como uma linguagem, de Lacan, do inconsciente estrutural, de Lévi-Strauss, para tomar as duas teorias irmãs, é que, permanecendo iguais os explananda, o explanans se diferencia fundamentalmente: Lacan acomoda a sua própria eficácia simbólica ao redor de um oco tomado como fator eficiente no fundo da causalidade. A causalidade significante teria, em Lacan, uma espécie de gerador que lhe serviria de fixação. A sua teoria poderia, se quisesse, terminar ali, onde a estrutura sintática tenciona dar conta dos fatos. Não obstante, ela tem a particularidade de seguir adiante e achar outros fatos últimos em si mesmos inexplicáveis. Veremos a seguir as principais influências de Kojève sobre Lacan, depois tentarei dilucidar por que Lacan aderiu à ontologia negativa de Kojève e, por fim, apresentarei uma interpretação acerca deste ideal de “completude negativa”.
7. LACAN, J.1966b, p. 258.
8. A maioria dos comentadores supõe que a influência é de Hegel, atropelando a diferença e o tipo de hegelianismo de Kojève. Assim, Phillipe Julien, por exemplo, não comenta a influência de Kojève: cf. JULIEN,P.,1993. Erik Porge a reduz somente à teoria do estágio do espelho, omitindo todas as outras variações e atribuindo, em muitos casos, apenas a uma influência hegeliana sem mencionar a intermediação de Kojève, cf.PORGE,E., 2000, pp. 68, 230. ElisabethRoudinesco, dilui a influência de Kojève juntando-a ao outro “K” aquem Lacan tomou conceitos de empréstimo, Alexandre Koyré, e situando-a unicamente numa suposta formação hegeliana anterior, cf.ROUDINESCO,E.,1994, pp. 101-120. David Macey, no afã de desfazer uma tese de unidade formal do pensamento lacaniano e vinculá-lo unicamente às reviravoltas da intelectualidade francesa da época, vê inclusive incompatibilidade entre a influência politzeriana e a de Kojève, como se uma fosse o pólo concreto e a outra o pólo abstrato da teoria lacaniana: cf. MACEY,D.,1988, p. 102. A única fonte de apoio e divulgador desta hipótese é Mikkel Borch-Jacobsen: Cf. BORCH-JACOBSEN,M., 1991, pp. 293-314; e BORCH-JACOBSEN,M.1990(1995). No Brasil, entre os poucos que mencionam o kojevismo em Lacan, senão os únicos, estão ARANTES,P. 1991, pp. 72-79, e 1992, pp. 64-77; além de SIMANKE,R. 2002.
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LACAN E O DESEJO DO DESEJO DE KOJÈVE – II
Os Princípios da Agonística Geral
A ontologia negativa pretende ser a descrição do mundo humano como a coabitação e a interação dinâmica de duas maneiras de ser: a identidade e a diferença. No mundo natural, o ser é sempre idêntico a si mesmo; mas, no mundo humano, este não é o caso, dado que inevitavelmente nos recusamos a ser o que somos. Uma pedra nada pode ser senão a mesma pedra de sempre: uma pedra por milhares de anos idêntica a si, salvo o desgaste do tempo. Uma pomba, que põe um ovo e o choca, gera uma outra pomba que vai botar outro ovo e gerar outras pombas e pombos que serão sempre iguais a si mesmos na sua forma e no seu comportamento. O mundo humano, não, ele nunca é igual, muda imprevisivelmente. O ser humano, diferente do animal e do mineral, é parte ativa, nega a realidade que lhe é dada, e a transforma naquilo que ela não é. Porém não somente a transforma, para fora de si, como também se transforma ao transformá-la. O ser humano, ao negar o “dado”, nega concomitantemente a si mesmo como aquilo que é, ou, em outras palavras, constrói a história, visto que “cria fatos”, ao alterar a realidade e a si mesmo em relação com ela. Diante de uma árvore, o humano já não a concebe somente como idêntica a si mesma – “árvore” –, mas a antecipa como madeira para construir um abrigo e modificar a maneira como ele tem se protegido até então do calor e do frio. Para o “ser histórico”, “ser” é, na realidade, “não-ser”. Porém, ainda mais importante, na interpretação que Kojève faz da Fenomenologia do espírito, há uma “essência” a ser desvelada. Uma essência não-fixa, em fluxo permanente, em inexorável transformação, uma “ek-sistência”, para dizer mais propriamente, cuja ação é a negatividade. A negatividade é uma dinâmica de transformação, é o que leva, no entender de Kojève, a Consciência em si a ser depois Consciência de si mediante o processo de incorporação de seu objeto – do seu outro. Pois bem, esta negatividade tem um nome concreto, é o desejo. Posto que a Consciência deve transcender a realidade para ser Autoconsciência, ela parte em busca do que lhe falta para ser o que não é. O processo de domínio do objeto pelo sujeito, ou a dialética do Senhor e do Escravo segundo a descrição kojeviana, a luta pelo puro prestígio ou pelo reconhecimento, é um movimento interpretado em termos de desejo. De desejo, ainda mais, dirigido a outro desejo: o desejo não deseja por si só, senão como “desejo do desejo do outro”. Este desejo, tomado em si mesmo, antes de sua satisfação, não pode ser para Kojève senão pura dinâmica negativa. No entanto, como o ser humano continuamente deve negar o dado, ele não pode parar, o seu desejo não pode ser, por isso, satisfeito. Desejo é, afinal de contas, desejo de nada para que a História se constitua como processo e chegue ao seu final.
Na antropologização da Fenomenologia do espírito feita por Kojève, o próprio da ação humana é entrar em relação com aquilo que ainda não é: ao agir, o ser humano não manifesta a sua vontade de ser, de conservar o ser, mas sim a sua vontade de não-ser. Demonstra o seu cansaço e o tédio de ser tal qual como é, demonstra o seu desejo de ser outro. Há uma eloqüente ilustração para demonstrar esse ponto. Uma imagem da ontologia negativa retomada várias vezes por Sartre e repercutida também, sob outras formas, por Lacan:
Tomemos um anel de ouro. Ele tem um buraco, e este buraco é tão essencial para o anel quanto o ouro: sem o ouro, o “buraco” (que, por outra parte, não existiria) não seria um anel; mas sem o buraco, o ouro (que não obstante existiria) tampouco seria um anel. Mas se alguém formou um buraco nos átomos do ouro, não é de nenhum modo necessário procurá-los dentro do buraco. E nada indica que o ouro e o buraco são de uma só e mesma maneira (bem entendido que se trata do buraco enquanto “buraco”, e não do ar que está “no buraco”). O buraco é um nada que subsiste (enquanto presença de uma ausência) graças ao ouro que é o seu entorno. De igual modo, o Ser humano, que é Ação, poderia ser um nada que “nadifica” no ser, graças ao ser que ele “nega”. 9
Uma das características mais curiosas do kojevismo é a inclusão de argumentos heideggerianos a favor da sua antropologia. Este pensador faz uma espécie de identificação do Dasein com o agir humano impulsionado pela negatividade. Toda esta montagem particular torna o seu hegelianismo tão estranho a Hegel, que não é nenhuma surpresa uma conseqüência nietzscheana ou até anti-hegeliana da sua filosofia, tal como aconteceu com seus discípulos Klossowski e Bataille.
9. KOJÈVE,A. 1947, nota (1), p. 487.
Antes dessas conseqüências, porém, Kojève foi o grande precursor do existencialismo. Ao seu redor esteve toda a intelectualidade que iria renovar o pensamento francês após a Segunda Guerra. Kojève tinha um grande talento de narrador.10 Por meio de sua fala, a austera e quase impenetrável Fenomelogia do espírito ganhava uma ornamentação dramática e viva, um colorido existencial e um efeito tão vibrante, que siderava imediatamente os seus ouvintes. Bataille e Queneau, os mais entusiasmados, se confessaram “pregados à cadeira” e “sufocados” pela surpreendente e portentosa interpretação.11 Não somente a audiência de Kojève era cativada pelo seu ensino, como também assimilava um Hegel antropologizado e existencialista que perdurou por décadas no solo francês, já que Jean Hypollite, o mais conhecido estudioso de Hegel na França na década de 50, acabou de certa forma por endossar esse modo de interpretar o mestre de Jena, confirmando a perspectiva existencialista e psicanalítica sobre esta obra de Hegel.12 Dizia Kojève, por sua parte, que a Fenomenologia do espírito era “uma descrição fenomenológica (no sentido husserliano da palavra); seu ‘objeto’ é o ser humano como ‘fenômeno existencial’.”13 E um pouco mais adiante que: “A Fenomenologia de Hegel é portanto ‘existencial’ como a de Heidegger. E ela deve servir de base para uma ontologia. (…) Independentemente do que pense Hegel, a Fenomenologia é uma antropologia filosófica.”14
A dialética hegeliana, desvestida do poder efetivo da sua Aufhebung, se transforma na mão de Kojève num eterno antagonismo de duas partes, o dominador contra o dominado, numa incessante “luta de morte por puro prestígio”, e num embate fundado no “reconhecimento do desejo”. A “superação” da luta, de fato, nunca acontece nestas narrações, senão com o “fim da história” e o “fim do ser humano”. Na prática, é o desejo, ali tomado em viés puramente negativo, o fator dinâmico e explicativo da ontologia nadificadora desenvolvida e ensinada naqueles seminários onde, na opinião de Pierre Macherrey, Hegel se tornou uma espécie de filho do casamento de Marx com Heidegger.15
Como em Kojève não há um itinerário da Consciência ao Saber Absoluto, o sujeito do desejo nunca desaparece, não cede o seu lugar à ciência, à Razão, ele não se despe da sua formação de Consciência de Si. O Espírito acaba sendo, para Kojève, também o ser humano, posto que é pelo trabalho e pela negativização que se passa à totalidade, a um sujeito composto e reconciliado com o seu objeto, no qual, pela dialética, o erro é incorporado à verdade e a contradição é vista como a aparência abstrata do real.16 O ideal de certeza hegeliano é substituído aqui pelo ideal de desejo: o truque só é possível porque na Fenomenologia a Consciência aparece, nos seus movimentos iniciais, como um “desejo de certeza”. Ele é abandonado, claro, quando se atinge o continente do Saber Absoluto: em Hegel, para dar-se conteúdo ao ideal de certeza, deve-se abandonar o sujeito; uma “verdade sem sujeito” é o que corresponde ao Espírito Absoluto.17 Mas em Kojève toda esta parte está ausente ou esquecida, tanto o desejo quanto o sujeito permanecem até o fim da história. Por este motivo, em Lacan, na prática, não há Hegel, há um hegelianismo de Kojève.
10. Cf. DESCOMBES,V, 1979, p. 40.
11. ROUDINESCO,E. 1994, p. 112.
12. Cf. ARANTES,P. 1992, pp. 66-67. No fim da década de 40, Hyppolite apenas abranda o caráter operativo do desejo kojeviano para realçar-lhe a incompletude; e no fim da década de 50 aplica o “espelho” de Lacan a Hegel.
13. KOJÈVE,A. 1947, p. 38.
14. Idem, p. 39.
15. MACHERREY,P. 1991, p. 319.
16. KOJÈVE,A. 1947, pp. 476-477.
A relação entre Lacan e Kojève não foi somente a de terem, juntos, pretendido escrever um texto sobre Hegel e Freud, finalmente abortado.18 E não foi apenas a adaptação do kojevismo na idéia de conceber o estágio do espelho, a experiência publicada de Henri Wallon, como antecipação da imagem do corpo próprio por meio da relação de luta com o outro. O interessante é que não deixa de dar-se o mesmo tipo de incorporação paradigmática em todas as fases da teoria lacaniana.
O Desejo Tomado Pela Negatividade
Definir “desejo” como “desejo do desejo do outro”, é, para Kojève (e para Lacan), instituir um princípio explicativo para as transformações humanas e sociais, e, com ele, uma epistemologia peculiar. Para este pensador, a gênese do ser humano confunde-se com o surgimento de um moi que se diferencia do non-moi, na medida em que ele se constitui somente como “desejo”. Este recurso retórico visa promover uma suposta superação do abstracionismo, do reducionismo e do método das ciências naturais e humanísticas. A epistemologia kojeviana supõe que a atividade científica seja dualista, pois separa sujeito e objeto. Este recorte, injustificável aos olhos deste filósofo, afastaria o sujeito que instituiu um objeto de investigação, para criar a ilusão de neutralidade e de objetividade. Ficando do lado de fora, o sujeito do conhecimento leva com ele certos valores, escolhas, as condições sociais que motivaram a sua atividade cognitiva, e a política que impulsiona e simultaneamente lhe coage a pesquisa. O procedimento epistemológico mais comum prende-se à tautologia, e esquece os fatores mais importantes da investigação científica, e, por isso, a abstração do método científico está aquém dos ideais concretos da filosofia. A fim de evitar a objetivação excessiva e a conseqüente perda do sujeito, o que realmente a epistemologia deve enfocar, para Kojève, é o desejo do objeto, pois só aí, em sua opinião, o ser humano é recordado a si mesmo. É preciso substituir o raciocínio tautológico pelo dialético. Diz-nos o autor que:
Antes de analisar o “Eu penso”, antes de proceder à teoria kantiana da consciência, ou seja à relação entre o sujeito (consciente) e o objeto (concebido), é preciso perguntar-se o que é este “sujeito” que se revela no e pelo Je do “Eu penso”. É preciso perguntar-se quando, por quê e como o homem é levado a dizer: “Je…”. 19
17. Cf. MACHERREY,P. 1991, pp. 317-318.
18. Cf. ROUDINESCO, E. 1994, pp. 118-120.
Tal como no eco dessa reflexão que ouvimos nos seminários de Lacan, Kojève quer substituir o “eu penso” de Descartes por um “eu desejo”, e propor a co-existência, no pensamento, de dois “eus” operando simultaneamente na conformação do ser humano – o Moi que é o assentamento da ilusão e do erro e o Je que é o sujeito do desejo, a revelação da verdade do ser. Sem embargo, o preço a pagar pela tentativa de objetivação de uma epistemologia “compreensiva” e pela operação conjunta dos dois eus, é conceber também o desejo como pura insatisfação e negatividade. Digamos assim, o conceito de subjetividade só pode permanecer na teoria às custas da sua negativização. A negativização é a formulação da hipótese de um sujeito esvaziado e relacional, cuja proposição pretende ser coerente com um “eu” dessubstancializado. Por isto, o Moi deve ser pensado como um “vazio ávido de conteúdo”.20 O desejo não é uma categoria que indica substancialidade ou qualquer outro modo de ser. Na verdade, o desejo predica a ausência de Ser; indica a presença de fome, a privação de nutrientes. Para Kojève, o desejo é “um Nada que nadifica no Ser, e não um Ser que é.”21 Precisamente este estado de insatisfação, um vazio que se quer preencher por aquilo que é pleno, esvaziando, por sua vez, este pleno e ocupando-lhe o lugar, é postulado como a qualidade distintiva e fundamental da nossa espécie.
Com este raciocínio, o fundador do existencialismo heteromáquico pretende passar aquilo que não é por aquilo que é: o ser humano, no seu entender, não é uma essência, uma coisa fixa, uma estabilidade identitária, é, isto sim, existência, movimento, trabalho e transformação. O ser humano é histórico. Não se trata de um vazio estático, de um nada puro, uma coisa em si, mas de um vazio ou um nada na medida em que se nadifica o ser para realizar alguma coisa à sua diferença ou às suas custas.22 O vazio é criado pela própria ação de diferenciar-se, de negar a identidade. O que causa, porém, a diferença ou o ato de diferenciar-se?
Desejar é destruir o objeto, pois o que se quer do objeto é que ele seja uma posse, destituindo-o de sua identidade e de sua propriedade, de sua pertença natural ou de seu lugar; ou então que ele seja uma parte de si, ao modo da satisfação da fome, que só acaba pela introjeção do elemento desejado. Se o ser humano arranca uma laranja do seu ramo, ele a desapossa de sua ligação natural com o seu meio, a árvore, e a consome pela destruição e introjeção da sua massa. Por isso, desejar é engajar-se numa ação negadora, eliminativa, transformadora e assimiladora do non-moi desejado. O que acontece ali é que ao desejar aquilo que não é o próprio eu, o ser humano diferencia-se do mundo, constituindo um eu como um ente separado ou um limite mediante o qual se exerce a ação de desejar.
Quando o conteúdo positivo do Moi se forma e se compõe pela negação, ele se torna uma função do non-moi negado. Contudo, até este ponto ainda não passamos da semelhança com o desejo do animal, que também quer a posse ou a introjeção de um objeto para a sua satisfação. Há um elemento, no entanto, que o animal não é capaz de constituir ao desejar e que realiza propriamente a separação do eu daquilo tudo que não é o eu: é que o ser humano não sabe desejar um “objeto natural”. Não é que ele não saiba “desejar naturalmente”, isto é outra coisa. A diferença consiste propriamente em que o humano deseja apenas o desejo, e este salto é o que o distingue. O ser humano não saberia, pelo raciocínio de Kojève, querer uma laranja ou um caqui por si mesmos, ele só quer o “desejo de laranja” ou o “desejo de caqui”. O desejo é o desejo do outro, é mediante o outro que percebo que há um objeto a ser desejado, não quero uma laranja ou um caqui, senão pelo fato de que algum outro ser humano também o quer. Isto fora, a laranja e o caqui não seriam sequer percebidos, e, em conseqüência, desejados.
19. KOJÈVE,A.1947, p. 165. Não traduzi “Je” para “eu”, nestes casos, porque Kojève o diferencia claramente do “Moi”. Cf., por exemplo, idem, p. 11.
20. Ibidem, p. 167.
21. Ib., pp. 168-169.
22. Ib., p. 167.
Pode parecer estranho, mas por que Kojève propõe este pensamento? A que fins ele tenciona chegar com isso? A resposta é que se ele não conceber o ser humano como um vazio ávido de conteúdo não poderia, segundo os termos propostos e o raciocínio traçado pela teoria, diferenciá-lo do animal, explicar o nascimento da cultura e as transformações da história, nem justificar sua peculiar teoria do conhecimento. E o elemento crucial para garantir essa preponderância do vazio ou do nada como um constitutivo que impulsiona a ação negadora e diferenciadora do ser humano, é exatamente o desejo. Essa concepção nadificadora e agonística do desejo, menos a sua perspectiva histórica, é preservada integralmente por Lacan. E a explicação do ser humano pela alternativa infinita entre identidade e diferença requer um desejo concebido como permanente insatisfação. Mesmo que o nada estático tenda a ser evitado no argumento, ele tem que reaparecer como o primum mobile da diferença ou, em outras palavras, como a sua identidade.
A identidade pode ser vista como uma relação de igualdade entre A e B; e a diferença, como uma relação de desigualdade entre A e B. Desse ponto de vista, identidade e diferença são dois tipos de prática diferentes, duas maneiras distintas de estabelecer uma relação entre dois termos ou elementos. Mas, se me prendo ao fato de que a identidade da identidade e a da diferença não podem ser encontradas (elas não têm essência fixa), e, para resolver o dilema, confundo as duas práticas de correlacionar A e B com um todo indissociável, chegarei a dizer que (A = A) é ao mesmo tempo (A _ A). A contradição fará parte, naturalmente, da história. Como disse antes, ela seria a “aparência abstrata do real”. O ser real, concreto, seria apenas a totalidade.23 Toda entidade real e concreta seria, apenas e unicamente, a totalidade dos seus elementos constitutivos idênticos e negadores. Mas, enquanto a história não chega ao seu fim, a totalidade é apreendida negativamente. Neste ponto, o problema do idealismo parece ser o de misturar regras de jogos diferentes com o fito de alcançar uma explicação última dos fatos. O desejo, em vez de descrição de uma atitude, passa a ocupar a posição de instrumento da atitude. Ou, em outros termos, passa a cumprir a função de “identidade” da diferença pelo viés negativo. Esta é, precisamente, a definição de Kojève: “Pois o Desejo como Desejo, isto é, antes de sua satisfação, nada é, com efeito, senão um nada revelado, um vazio irreal.”24
23. Ib.,p. 476.
O desejo é a “revelação de um vazio”, a “presença de uma ausência” (mote que será retomado por Lacan para a função do significante), já que ele é o arauto que convoca uma realidade que faltaria. Porém, não sendo o desejo a própria realidade ou a coisa que falta, ele se mantém idêntico a si mesmo como apenas um “nada”, precisamente aquele vazio ou aquela carência que distinguiria do contínuo estático o ser do humano como não idêntico a si, projetando-o, pela força de sua ação, na ek-sistência, e separando-o dos animais e das coisas inanimadas.
A Luta de Morte pelo Puro Prestígio
O ser humano é desejo de desejos, tanto para Kojève como para Lacan. Esta é a sua natureza ontológica essencial. O desejo não é uma propriedade que o ser humano pode ter ou não. O ser de desejo é um fato proveniente de achar-se o sujeito como indivíduo-em-relação, como um dos nós de uma grande rede, co-partícipe de uma “sociedade de desejos se desejando mutuamente como desejos”. Ser “ser humano” é ser mediatizado pelo desejo de um outro que se refere ao mesmo objeto. Portanto, a propriedade imaterial que define o humano não se acha, segundo o raciocínio, no seu interior, guardado na sua cabeça, como parte da sua mente, mas no lado de fora, no encontro com o outro.
Pela via do externalismo o ser humano, ser social, chega a ser desejo pelo “desejo de reconhecimento”. O seu modo de ser social e de ser outro não pode se dar senão sendo o outro. Contudo, a mola propulsora da ação de negar e de “ser outro” é o vazio que o constitui como “desejo de desejo”. Este vazio, na realidade concreta, é uma luta invencível, ou, melhor, é a preservação da vida numa batalha que já perdemos numa guerra que esperamos um dia vencer. Ao situar o desejo no contexto social como “desejo de reconhecimento”, como uma luta pelo puro prestígio, a teoria ganha ares de antimetafísica, no sentido de não ser essencialista nem abstrata.
A figura de uma luta pelo “puro prestígio” não se encontra em Hegel. Trata-se de uma interpretação particular de Kojève, muito repercutida também por Lacan.25 Por que o processo de identidade e diferença, ou o desejo, tem que ser uma luta? Mais uma vez, para escapar-se do abstracionismo. Na filosofia concreta não deve haver “desejo” em abstrato, como coisa em si, separada das relações que o indivíduo entretém com outro. Entretanto, o desejo deve ser tomado como permanente negatividade e insatisfação. A fórmula “desejo de reconhecimento”, no hegelianismo de esquerda de Kojève, deve cumprir um destino de permanente desconformidade. Desejo de reconhecimento é uma luta pelo poder, mas esta luta de poder não tem fim.26 O final da luta é também o fim da sociedade organizada (e do pensamento). Para Kojève, o presente não é mais que um armistício, uma situação de trégua na qual o lado vencido reprime o desejo e adia o seu gozo para um momento mais favorável. Que esta idéia coincida formalmente com a interpretação da cultura de Freud, é uma feliz coincidência para Lacan.
24. Ib., p. 12.
25. Cf. ARANTES,P. 1991, p. 74.
Em Kojève, a disputa ocorre porque o reconhecimento só pode ser feito por uma das partes da oposição, e não pelas duas ao mesmo tempo. Não há acordo imediato, já que a Razão se constitui pari passu com os vaivéns imprevisíveis do curso histórico. Neste caso, aquele que reconhece o desejo do outro em primeiro lugar é o Escravo, que, por conseguinte, recalca seu próprio desejo de reconhecimento, e o sublima no trabalho obrigatório para garantir a sobrevivência e não morrer. A luta pelo prestígio deve ser uma luta de morte sem morte, resolvida não com o assassinato de algum dos oponentes, mas pela submissão de um e o domínio do outro.
Aquele que se tornou o Senhor, no entanto, não pode mais ser reconhecido, pois o decorrer da sua história termina com a vitória. Ele acaba como o Senhor no gozo dos frutos do trabalho do Escravo. O Escravo, não obstante, não só trabalha, mas guarda os segredos das técnicas do seu trabalho, do saber sobre o seu serviço de produção de bens, dos quais o Senhor se torna dependente para obter o gozo. O Escravo proporciona os meios para o gozo do Senhor, adia a satisfação do seu próprio desejo, e se mantém humanizado como alguém que deseja em algum tempo futuro ter o seu desejo também reconhecido. Desejo, portanto, torna-se projeto.
O Escravo vem a ser, assim, o único ser humano integral e absolutamente livre, por paradoxal que possa parecer à primeira vista. Só ele é capaz de introduzir novas realidades pela transformação dos meios de produção, só ele tem o poder de criar possibilidades pela negação da impossibilidade; se o senhorio ocioso é um impasse diante do mundo, a escravidão é a fonte latente de todo o progresso humano, social e histórico. Na versão psicanalítica, a escravidão pode ser a fonte da sua própria cura, na medida em que o sujeito aceita a castração, aprende o segredo da perene insatisfação do desejo, ou da sua incompletude, da sua falta, e admite uma forma possível, porém não menos ambiciosa, de gozo, ao mudar de tática e trocar a inflexibilidade do desejo de reconhecimento pela dialética do reconhecimento do desejo.
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LACAN E O DESEJO DO DESEJO DE KOJÈVE – III
O Real de Kojève
Subsumir o sensível em conceitos equivale, para Kojève, a um “assassinato”.27 Ao reverberar seu mestre, Lacan acrescenta que este assassinato constitui no sujeito a “eternização do seu desejo”: a simbolização é a morte da coisa.28 O raciocínio se explica pelo pressuposto de que a linguagem não é somente uma interposição de limite, mas também a indicação de que permanece no corte um resto inefável. Não se trata apenas de excluir, mas de constituir uma diferença de potencial, uma tensão irrevogável.
26. Cf. KOJÈVE,A. 1947, pp. 14ss.
27. Idem, pp. 372ss. Devo esta idéia da convergência da teoria da linguagem de Lacan com a idéia de “assassinato”, de Kojève, à Lea Silveira Sales, doutoranda do Dept. de Filosofia da UFSCar.
28. LACAN, J. 1966b, p. 319.
A expressão, portanto, promete e não cumpre, não diz tudo o que deveria. Esta eterna inconformidade entre o ser e o não-ser, em Kojève, instaura e mobiliza a História; em Lacan corresponde ao nascimento do desejo. A limitação da linguagem não é somente um limite, além do qual nada existe. O fato é que a parte anulada pela linguagem, o resto inefável não subsumido no conceito, cobra da linguagem o seu lugar, e a dinâmica dizer/mostrar perpetua o movimento de falha e reconstrução simbólica como luta pelo puro prestígio. O resto não subsumido no conceito, a parte do sensível não caracterizada como essencial pela compreensão, é anulada, e o sentido, que sobrevive no presente como palavra, torna-se petrificado e morto. A palavra “cão”, abstraída do cão empírico, real, sobrevive pela anulação da sua temporalidade e existência. Mas a “palavra ‘cão’ não corre, não bebe e não come; nela o Sentido (a Essência) cessa de viver; isto é, ela morre.”29 Se fôssemos todos eternos, imortais como os trogloditas do conto de Borges,30 não necessitaríamos de palavras, pois o cão real, vivente e bricalhão bastaria por si mesmo. Os trogloditas imortais nada dizem, não falam por absoluta falta de necessidade de veicular sentidos, já que, do ponto de vista da eternidade, não apenas aquele cão, mas todos os cães do mundo seriam conhecidos por todos no decorrer da existência infinita. A linguagem, entretanto, por pertencer aos mortais e estar mergulhada no tempo, mata o cão real para fabricar sentidos e fazê-lo permanecer como morto. Lança-nos, assim, na assimetria e no inconformismo entre o sentido e a existência. É por este motivo que o Real de Lacan é a lembrança da impossibilidade da relação sexual e ao mesmo tempo a marca da inexistência d’A mulher. Para Lacan, não existe “A mulher, com o artigo definido para designar o universal”.31 Por isto, o Real se inscreve como o gozo interditado, roubado não apenas pelo pai vivo, mas, sobretudo, pelo seu assassinato. A morte do pai, aquisição do simbólico, nos separa definitivamente da existência real e impede a realização sensível do gozo. Não podemos escapar, não somos imortais, não temos a linguagem de Tzinacán. O pai morto faz com que o real “não cesse de não se escrever”.
Na concepção kojeviana, tal como em Lacan, o “real” é absorvido somente como “impasse” ou “impossibilidade” operativos. A premissa de inseparabilidade entre o subjetivo e o objetivo, adiconado ao raciocínio de que é pela negatividade que se apreende o concreto, transformam o Espírito Absoluto hegeliano em sinônimo de Real. O Real é o que existe do Ser que meramente é:
A estrutura do pensamento é portanto determinada pela estrutura do Ser que ele revela. Se o pensamento “lógico” tem três aspectos, se ele é, dito de outra forma, dialético (no sentido amplo), ele o é unicamente porque o próprio Ser é dialético (no sentido amplo), pelo fato de implicar um “elemento-constitutivo” ou um “aspecto” negativo ou negador (dialético no sentido estreito e forte do termo). O pensamento é dialético na medida em que revela corretamente a dialética do Ser que é e do Real que existe. 32
29. KOJÈVE,A. 1947, p.373.
30. No conto de Borges, “El inmortal”, a imortalidade revela-se como a mais trivial das existências. Cf. BORGES,J.L.,1971, pp. 7-31.
31. LACAN,J. 1975c, lição de 20/02/1973, p. 93.
Pela epistemologia de Kojève, o equívoco da ciência ao tratar do real, é, precisamente, “fazer abstração do sujeito”.33 Mas para o Sábio, aberto ao acontecimento do Real no discurso – e do discurso no Real – , a experiência não se reporta nem a um nem a outro, apanhados isoladamente; é só a unidade indissolúvel dos contraditórios que torna possível a sua percepção. O Real seria, portanto, aquilo que na realidade concreta ultrapassa a identidade do ser. Ele se confunde com a extrapolação, projeta-se sobre a totalidade das possibilidades de identidade, é muito maior do que a fixação de apenas um momento na continuidade do devir. Em vista do Real, a identidade entre o ser e o mesmo, o A = A da tautologia, a forma própria do entendimento científico, segundo Kojève, simplesmente não existe.34 As operações do entendimento só apreendem uma parcela desse Real, porém, do ponto de vista da totalidade do ser no devir histórico, a fórmula verdadeira deve ser lida como A _ A. Para além da identidade percebida pelo entendimento, a Razão revela os elementos negadores das transformações históricas no contínuo espaço-temporal do universo: o Real vem a ser, frente ao ser, ele mesmo e o seu resto negativizante. Neste sentido, o erro tampouco importa como coisa em si mesma, o erro é também parte integrante da totalidade, ele pode até revelar-se no futuro como “verdade”: “O homem pode, portanto, transformar um crime em virtude, um erro moral ou antropológico em uma verdade.”35
Toda filosofia não é senão verdadeira e falsa ao mesmo tempo, isto é, uma dialética que absorve o falso e o verdadeiro, a subjetividade e o objetivo, tragando e superando os contrapostos nas transformações do curso histórico. E mesmo o irracional, diante da totalidade, nada é senão um momento do devir concreto, alguns segundos de desrazão nos milhões de anos de soberania concreta da História. Tomado pela perspectiva da totalidade, o “Real é racional”. Ou, se queremos, o mesmo “mundo indistinto”, ou a “impossibilidade” ou o vazio causal. Com efeito, Lacan concebe a sua lógica do Real como lógica dos impasses da lógica:
O importante, o que constitui o Real, é que pela lógica ocorre algo que demonstra não que p e não-p são ao mesmo tempo falsos, senão que nem um nem outro podem ser verificados logicamente de nenhuma maneira. (…) Esse é o Real, tal como nos é permitido definir na lógica, e a lógica só nos permite defini-lo se somos capazes, com relação a essa refutação de um e de outro, de inventá-la. 36
32. KOJÈVE,A. 1947, p. 448.
33. Idem, pp. 454-455. Este pensamento servirá depois para Lacan justificar a separação entre o “discurso da Universidade” e o “discurso do Analista”, ao reivindicar que a psicanálise é a única teoria que leva em conta o “sujeito”. Cf. LACAN,J. 1991, pp. 44ss.
34. KOJÈVE,A.1947, p. 478; cf. tb. pp. 471ss.
35. Idem, p. 465.
O Real é pensado por Kojève não apenas na modalidade de uma projeção que excede os limites do pensável, senão também como um apenso da descontinuidade na serenidade do ser. Em outras palavras, o Real não é só transbordamento, mas também uma ação no interior da fixidez do sentido, como uma fenda do negativo no coração das crenças, ou como a invasão do movimento nas convicções ilusórias ou na fixidez dos sentidos. O Real é uma espécie de “laceração” entre o ser humano e a natureza que sobrevive e perdura latente no Discurso. Esta divisão é, na verdade, o que dá origem à Razão; esta também é uma descontinuidade que, em dimensão microscópica, é lida como “negatividade”. Esse motor de propulsão da História vem a ser, no fim dos tempos, o próprio Espírito.37 O Real situa-se, portanto, para este pensador, também como a forma negativa do ser, e a sua contraparte no processo dialético de totalização da história pela via da negatividade. Bastaria, para devolver Lacan a Kojève, imaginar o seu “Real” no contexto do trabalho humano visto pela janela da antecipação da totalidade, ou do conjunto da história a partir do seu final. Não como a extensão para além do simbólico da limitação que o próprio simbólico instaura na margem da sua finitude, ou como “furo” na possibilidade imaginária de expressão da cultura. Em Lacan, o Real é um outro registro ou modalidade da linguagem. E, deveras, a idéia de que “tudo o que é Real é racional” aparece desde cedo neste autor como o protótipo do que viria a seguir no desenvolvimento do seu próprio estilo de fazer teoria.38
A Negatividade Explicativa
Se a linguagem é a apresentação da coisa morta, não é parte da sua função precípua a referência. A linguagem remete, por este motivo, somente a si mesma. A linguagem castra e mente. O desejo é a presença desta ausência,39 da “coisa” castrada sobrevivendo na demanda como ilusão. Ao definir o ser humano como “desejo de desejo”, Kojève instituiu uma epistemologia consequente com a sua tese de inseparabilidade entre sujeito e objeto, ou entre ser e mundo. O desejo negativizado assume as vezes de “causa eficiente” do movimento histórico, pois separa-se do ser humano que, por outra parte, define. A negatividade torna-se um terceiro termo, uma realidade última mediante a qual explicam-se os fatos. O desejo associado ao Nada já não é mais o desejo de alguém, como o de Maria, Pedro ou João. Entretanto, tampouco pode-se dizer que se trata de um princípio abstrato, um conceito que subsume universalmente as características essenciais do empírico ou do sensível. O “desejo do desejo do outro” passa a cumprir o papel de um princípio fundamental da ontologia negativa da mesma forma que uma “proposição gramatical” que ordena a realidade e institui os limites da possibilidade e do sentido, de maneira inseparável da própria realidade empírica que ordena. Kojève promove uma metafísica operacional como critério de interpretação dos fatos, cria fios argumentativos que tecem uma descrição possível e coerente do comportamento humano como, isto sim, atitude de pessoas concretas. Temos, assim, a proposição de uma hipótese que é simultaneamente o estabelecimento de um princípio gerador e organizador que abraça o comportamento como um sintoma da sua presença invisível, e que, por sua vez, está excluído das regras que ele mesmo organiza.
36. LACAN, J. 1974, lição de 19/02/1974.
37. KOJÈVE, A., p. 549.
38. Cf. LACAN, J., 1966b, p. 310.
39. “O desejo é a presença da ausência, ele não é uma realidade empírica, não existe de uma maneira positiva no presente natural. Ele é… como uma lacuna ou um “furo” no Espaço: – um vazio, um nada.” KOJÈVE, A., p.368.
O Interesse de Lacan por Kojève
Por que teria Lacan assimilado de maneira tão orgânica o kojevismo? Por que mimetizou de tal maneira a sua teoria que chegou ao ponto de, também ele, ter-se transformado num pregador de seminários? Sabemos que a grande ambição de Lacan sempre foi a de constituir uma ciência da subjetividade. Nas suas primeiras formulações teóricas este ideal aparece consignado na criação do conceito de “personalidade paranóica”, que pretendia ser a figuração de uma nova forma de fazer teoria psicológica. Desde então, Lacan já recusava tanto as reduções organicistas da psiquiatria quanto as abordagens tipicamente compreensivas do fenômeno mental, buscando uma “terceira via” de cientificidade possível para os fenômenos psicológicos. O ideal é que esta forma teórica pudesse tornar os fatores indeterminados das teorias compreensivas em fontes de determinação, ao modo da explicação causal. Esta terceira via foi erigida nos moldes politzerianos. Se Lacan incorporou posteriormente a negatividade kojeviana do desejo, foi também porque aquela proposta sintetizava muito bem a bandeira da “filosofia concreta”. Mas, além disso, acresce o fato de que o “desejo do desejo do outro” é uma proposição teórica mais simples e com maior poder explicativo. Ela poderia englobar também a “paranóia de autopunição”.
Numa época em que toda a vanguarda parisiense inconformista e atuante da década de 30 respirava o ar do vers le concret, título de um livro de Jean Wahl publicado em 1932,40 que abrigava sob essa etiqueta tanto a “infelicidade da consciência”,41 de inspiração hegeliana, quanto uma espécie de existencialismo interpretado pela via kierkegaardiana,42 pelo lado da psicanálise, o livro de Politzer, Crítica dos fundamentos da psicologia,43 de 1928, se somava a essa atmosfera propondo uma teoria do comportamento humano livre dos postulados da vida interior do ser humano, com inspiração apenas nos aspectos pragmáticos da psicanálise freudiana.
40. Cf. WAHL,J., 1932.
41. Cf. WAHL,J., 1929.
42. Cf. ARANTES,P., 1991, p.73.
43. Cf. POLITZER, G. 1998.
A crítica politzeriana do que denominava como “psicologia abstrata” tornou-se o primeiro modelo teórico de Lacan. Os “aspectos pragmáticos”, no caso de Politzer, significavam a redução do fato psicológico não ao realismo empírico dos objetos mentais, tal como se a psicologia pudesse ser a física da interioridade, tal como se ela pudesse referir-se ao fato psicológico em terceira pessoa, mas somente à primeira pessoa do singular do sujeito da vida dramática, isto é, ao sentido ou significado que ele poderia ser atribuído ao conjunto da sua particularidade vivencial.
A ‘transformação’ própria da psicologia seria precisamente a que considera em ‘primeira pessoa’ todos os fatos com que essa ciência possa ocupar-se, mas de tal maneira que, para todo o ser e para toda significação dos fatos, a hipótese de uma primeira pessoa fosse constantemente indispensável. 44
Em vez de buscar o fato psicológico em supostos objetos mentais depositados na profundidade interna do indivíduo, isto é, em objetos mentais guardados na memória que seriam eficazes independentemente da consciência da pessoa e das suas relações sociais, dever-se-ia localizá-lo na superfície exterior dos sentidos e na ação dramática vivenciada pelo sujeito na sua fala, comportamentos e relato de sonhos. Em outras palavras, a convencionalidade e anterioridade do sentido seriam trocados pelo sentido do relato como ação no presente, e a interioridade do fato psicológico pelos atos dramáticos à luz da totalidade histórica do sujeito concreto.45 Para Politzer, a psicologia abstrata, representada em seu livro pelos ideais científicos sustentados pelo behaviorismo, pela Gestalt e pela psicanálise, não era muito mais do que uma renitente e patética demonstração de auto-engano combinada com fracasso metodológico. As formulações teóricas da psicologia abstrata (behaviorismo, Gestalt e psicanálise) modelavam-se, sustentava o autor, pela ciência natural. Ela também constituia seus objetos pelo recurso ao abstracionismo, ao formalismo e ao realismo. Procurando ser coerente com a crítica kantiana à psicologia racional e à psicologia empírica como ciência, Politzer pensava que o fato psicológico não poderia reduzir-se ao “realismo”, isto é, utilizar-se dos métodos apropriados a objetos que se encontram fora de nós, no espaço, tal como na física, na química e na biologia.
Para poder legitimar-se como ciência dos fatos do eu, pela sua proposta a psicologia se referiria, dali em diante, apenas à sucinta e concisa categoria de “drama”. Pelo drama, não é mais o eu que guarda o tesouro da significação dramática, o fato psicológico não está na interioridade. Mas é o drama, no sentido pessoal, que guarda o sentido do eu. O concreto seria então os fatos que se relacionam e se implicam com o “eu” do sujeito e os seus conflitos existenciais. Os elementos explicativos em terceira pessoa, as assim chamadas abstrações, pertenceriam a uma forma de psicologia contrária à concreta, a psicologia abstrata, que tentaria legitimar-se à guisa de ciência natural.
44. Idem, pp. 62-63.
45. Cf. GABBI Jr.,O. 1998, pp. VI a XIV.
Reparemos bem: a intenção real de Politzer não era tanto a de retirar a roupagem científica da psicologia, mas a de propor-lhe uma outra forma de ser ciência. Uma transformação da abordagem dos fatos psicológicos do abstrato para o concreto, para dotar a psicologia de um objeto especialmente adequado. Agora não mais pelos parâmetros possíveis para as ciências naturais, mas sim pela maneira pessoal de abordagem dos fatos. Dessa vez, já não mais como uma ciência do geral e do abstrato, de causalidades universais ou “impessoais”,46 como uma ciência que necessariamente supõe que os seus dados de observação têm existência real como qualquer outra substância presente no mundo sensível, ou, pelo menos, em analogia com elas. Já não mais como aquela que se vale de um método de introspecção para investigar a vida interior do indivíduo e tem por hábito destacar o sonho da pessoa que o sonhou em busca de determinantes ou concomitantes de processos psicológicos, porém como uma ciência de causalidades particulares ou “secundárias”,47 no mesmo plano da singularidade do indivíduo, atendo-se apenas e unicamente a cada subjetividade particular. Uma ciência que, embora sem valor universal, aplicar-se-ia, no entender de Politzer, “à média dos indivíduos, e a todos para certos sonhos”,48 uma descrição empírica do drama baseada em induções não-gerais que partem sempre do individual concreto. Para este pensador, a psicologia concreta cumpriria perfeitamente as condições de existência de uma psicologia que se quer positiva. São três:49
(a) ser uma ciência a posteriori, quer dizer, o estudo adequado de um grupo de fatos;
(b) ser original, isto é, estudar fatos irredutíveis aos objetos das outras ciências;
(c) ser objetiva, em outros termos, definir o fato e o método psicológicos de tal forma que sejam universalmente acessíveis e verificáveis.
É certo que Lacan atendeu graciosamente às proposições da psicologia concreta. Isso se revela não somente nas “conclusões dogmáticas” da tese de 32 sobre o “caso Aimée”,50 mas igualmente na forma como este pensador da psicanálise dessubstancializa a metapsicologia freudiana e a envolve caracteristicamente nas malhas da estrutura de sentidos dos dramas do sujeito particular: “Nós entendemos por compreender, dar sentido humano às condutas que observamos nos nossos pacientes, aos fenômenos mentais que nos apresentam.” 51
No trabalho sobre A psicose paranóica, Lacan pretende afastar-se das hipóteses exclusivamente constitutivas, reativas e organicistas das causas desta doença mental, e propor uma modalidade de ciência possível para a psiquiatria. A psicose não decorre precisamente de determinações inatas ou de fatores elementares e abstratos, mas ela deve ser apreendida em sua totalidade, nas relações significativas que fundam o assentimento da comunidade humana e organizam a estrutura da personalidade.
46. POLITZER, G. 1998, p. 59.
47. Idem., p. 71.
48. Ib., p. 81.
49. Ib., p. 182.
50. LACAN, J., 1975a, p. 346.
51. Idem, p. 309.
Esse movimento de dessubstancialização do elementar e do abstrato em favor do exterior e do concreto, não é um fenômeno presente somente no Lacan de 1932, não é uma inclinação teórica pontual, episódica e momentânea, mas perdura por todas as modulações por que passa o seu pensamento desde então. Todas as suas definições conceituais evitam a linguagem coisificante e o realismo, além de apor os efeitos do elemento definido na superfície onde o eu se estrutura – aliás, este é justamente o grande motivo da discordância e do rechaço da definição de inconsciente como “fundamento da linguagem”52 dada por Jean Laplanche, no Colóquio de Bonneval em 1960. Para Lacan, ao contrário de Laplanche, a linguagem é a condição do inconsciente. Na sua teoria, o inconsciente nunca é uma coisa; é, antes de tudo, um ato.53 Por isto, os conceitos substancializados e impessoais do freudismo são todos atrelados à continuidade da organização da subjetividade, que para Lacan não é interna, mas aparente; e os conceitos energéticos são revistos em termos relacionais (o eu e o outro) ou então imagéticos (formação de um ideal de eu).54
Porém, não foram apenas os aspectos pragmáticos, mas, sobretudo, o ideal de ciência de Politzer, o fator decisivo incorporado por Lacan a sua teoria psicanalítica. Desde o começo nosso autor pensava na psicanálise como “ciência do particular”,55 e a busca do rigor conceitual foi levada, nesse sentido, até o extremo da matematização e da geometrização.56 Sob Lacan a teoria se tornou enormemente complexa – e hermética – graças a essa vontade de legitimação.
Apesar do silêncio sobre a fonte (o nome de Politzer nos textos de Lacan brilha por sua ausência),57 o trabalho acadêmico de 32 é politzeriano no sentido de que Lacan rejeitou a etiologia organicista e concebeu a idéia de personalidade paranóica (como também a tipologia clínica “paranóia de autopunição” a ela associada) em relação com a totalidade dos antecedentes biográficos da paciente, os seus motivos e intenções conscientes ou não, o que se destacava de significativo nos seus delírios, e contextualizou todas essas ações ao meio social em que surgiram. O então doutorando evitou cuidadosamente o uso realista e objetivo do conceito de inconsciente da psicanálise de Freud e deu preferência, em vez disso, às formulações sobre o ego e o superego que dispensassem o recurso aos problemas energéticos da libido.58 A intenção era apenas a de abrigar a compreensão das representações e das fixações do sujeito dentro da polarização rivalizada entre o ideal subjetivo do eu e o julgamento do outro na qual surgia, a seu ver, a personalidade paranóica.59
52. Cf. LACAN,J., 2001a, pp. 393-401. Tb., 1973, lição de 17/06/1964.
53. “O inconsciente é entre eles [o sujeito e o Outro] o seu corte em ato” LACAN,J. 1966c, p. 839.
54. Cf. LACAN, J. 1966d, pp. 90-92.
55. LACAN,J. 1975b, p. 38, lição de 20 e 27/01/1954.
56. O que já estava prenunciado desde o Discurso de Roma, em 1953, que fala do objetivismo e o rigor matemáticos, previa o uso do toro, e buscava o lugar da psicanálise entre as ciências. Cf. LACAN,J. 1966b, p. 320.
57. Um costume, diga-se de passagem, pelo qual este autor também se notabilizou. Em toda a sua obra falada e escrita, Politzer é citado uma só vez nos Écrits (LACAN,J., 1966e, p. 161), uma vez no Seminário XVII (LACAN,J., 1991, pp. 71-72, lição de 20/01/1970), e aúltima vez no “Prefácio” de 1969 à tese de Anika Rifflet-Lemaire (LACAN,J.2001a, pp. 396 e 397).
A psicose era então pensada por Lacan como perturbação específica da “síntese psíquica”, que ele denominava como “personalidade”.60 Essas perturbações da personalidade se prenderiam peculiarmente aos fenômenos do sentido humano, os quais, na Tese, seriam objetivados nas seguintes áreas:61
(1) um desenvolvimento biográfico – uma evolução típica e as relações de compreensão que ali podem ser lidas; traduzido pelo sujeito como os modos afetivos pelos quais o sujeito vive a sua história;
(2) uma concepção de si – as atitudes vitais e o progresso dialético que ali se podem desvendar; traduzida pelo sujeito como imagens mais ou menos ideais de si que o sujeito leva à consciência;
(3) uma certa tensão de relações sociais – a autonomia pragmática da conduta e os laços de participação ética que ali se reconheçam; traduzida pelo sujeito como os valores representativos pelos quais ele se sentiria afetado pelo outro.
A pergunta que podemos nos fazer diante disso é por que o Lacan concreto, formulador de uma teoria inovadora da psicose de tipo paranóide muito bem recebida nos meios da vanguarda intelectual parisiense dos anos 30 (e completamente ignorada nos meios psicanalíticos de então),62 incorporou a metafísica kojeviana? É inegável que Kojève era naquela época o centro da atmosfera do vers le concret; entretanto, não é o brilho e a exuberância do espetáculo que podem responder à pergunta. É bem mais factível atentar para uma carência interna da lógica da própria teoria que o inovador psiquiatra tentava formular rigorosamente. Ora, a estrutura da personalidade, definida entre as fixações e as resistências da própria subjetividade e as influências incorporadas do outro, poderia contar com uma fundamentação filosófica mais firme, alguma coisa que explicasse de maneira unívoca e simples as suas origens causais.
Para quem buscava encontrar a “objetividade do subjetivo”,63 a idéia que propunha que a “estrutura reacional” do sujeito já estava inscrita na própria alienação do “eu” no “outro”, na estrutura da própria formação da consciência como processo de socialização, não poderia parecer menos que magnífica.64 Uma teoria menos frouxa, menos diluída na própria subjetividade que deveria ser descrita, muito menos indefinida que a categoria politzeriana de “drama”, seria claramente preferível, dada a preponderância da sua busca de cientificidade sobre a sua busca de “concretismo”. Lacan pretendia antes uma credibilidade científica que uma “boa interpretação”. Por isso, a intenção era esposar um tipo de causalidade que se coadunasse com as vias concretas da filosofia pela qual ele já havia optado, ou seja, uma espécie de “causalidade postulada a posteriori”, tal como propugnava Politzer, mas que também satisfizesse a ideais científicos mais rigorosos que simplesmente um conhecimento ou interpretação empírica.
58. LACAN, J. 1975a, p. 280 e também pp. 320ss.
59. Idem., p. 247.
60. Cf. Ib., p. 14.
61. Ib., p. 14 e 42-43.
62. Cf. ROUDINESCO, E. 1994, pp. 73-75. Logo após a tese doutoral, em 1933-1934, Lacan publica na revista “Le Minotaure”, órgão de divulgação da vanguarda surrealista parisiense, um artigo sobre o crime das irmãs Papin, no qual retomava a sua hipótese sobre a paranóia de autopunição.
63. Cf. OGILVIE, B, 1993, p. 10.
64. Cf. ARANTES, P. 1992, p. 65.
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LACAN E O DESEJO DO DESEJO DE KOJÈVE – IV
A Determinação Causal da Subjetividade
Para o Lacan da Tese de 32, a “estruturação da personalidade” era apenas uma parte da totalidade determinativa da psicose paranóica, junto com fatores individuais e sociais. Para evitar o organicismo e o causalismo cegos de tipo naturalista, nosso autor armou todo o conceito de personalidade em cima de idéia de “processo psíquico”, não forjada por ele, mas importada da volumosa obra psiquiátrica de Karl Jaspers, a Psicopatologia geral.65 Este conceito serviria para contrapôr-se à hipótese de que a personalidade psicótica se formaria apenas por reação a um trauma ou por meio de processos orgânicos.66 O filósofo alemão supunha que no caso das psicoses, incompreensíveis em si mesmas, o método humanístico do Verstehen encontraria fatalmente alguns limites intransponíveis, uma vez que o entendimento desta afecção psíquica não depende somente da consciência. O psicólogo deveria optar então, nesses casos, também pela Erklärung e os fatores causais, compondo uma peça híbrida de cooperação mútua.
Porém, os objetivos de Lacan não eram os mesmos de Jaspers. Lacan não pretendia separar, mas unificar os campos distintos de atuação do conhecimento. Ele aspirava a defender a hipótese de que o processo psíquico aplicado à paranóia emprestaria legitimidade à noção de que a personalidade é uma estruturação, uma organização em torno da individualidade mergulhada num meio social, e de que a psicose, por outra parte, seria uma anomalia que se ordena por todos estes meios, em vez de somente por causas orgânicas ou por reação a um dado de tipo atômico na vida interior do indivíduo.
Jaspers trabalhava com a composição dos métodos fenomenológico, compreensivo e explicativo. No entanto, se, por um lado, era perfeitamente claro para o psiquiatra e filósofo de Heidelberg que o conteúdo compreensível das psicoses era restrito, e de que, por outro lado, a noção de “personalidade” pertencia inteiramente ao campo do compreensível, já para Lacan, essas distinções e esclarecimentos acerca de campos de atuação de especificidades do conhecimento não eram importantes. Lacan supunha, deveras, que uma definição objetiva de personalidade poderia ser encontrada precisamente nas três coordenadas que foram elencadas acima: biografia, imagem de si e relação com o outro.
65. Cf. LACAN,J. 1975a, pp. 139-148.
66. Cf. “A paranóia como fenômeno de conhecimento”, capítulo II de SIMANKE, R. 2002, pp. 59-150, que descreve a montagem da tese lacaniana com riqueza de detalhes.
Obviamente que, ao passar por cima dos limites do compreensível e buscar uma espécie de “terceira via”, a psicogênese que Lacan conseguiu circunscrever no seu trabalho, a organização da personalidade em torno de conflitos e fixações,67 trouxe-lhe alguns problemas de precisão ou, pelo menos, de amarração, para delimitar rigorosamente a suposta determinação causal. O próprio Jaspers já advertia que uma teoria da personalidade não poderia contar com nenhuma espécie de causalidade unívoca, exigência normal, em sua opinião, de toda a psicopatologia.68 Lacan, no entanto, insistiu em compor um trabalho entrecruzado por elementos de tipo “compreensível” e “incompreensível”, sem restar importância ou, pelo menos, indicar efetivamente ao leitor a miscigenação dos métodos e o lugar prescrito de aplicação de cada um deles. A idéia de “processo” em Jaspers servia apenas para o “incompreensível” dos objetos psicopatológicos; ao utilizá-la numa teoria da personalidade, de tipo compreensivo, esses limites deveriam inevitavelmente aparecer como contradição.69
Não obstante, o princípio do determinismo, exaustivamente buscado por Lacan ao longo de toda a sua tese,70 longe de lhe parecer contraditório, aplicava-se com igual virtude para os tipos de causalidades mais complexas.71 Ogilvie, justamente sobre este ponto, pensa que:
… o princípio do determinismo (…) não leva Lacan de nenhum modo a considerar como sem valor ou sem realidade aquilo que parece lhe escapar, mas, ao contrário, a buscar o tipo de determinismo adaptado àquilo que se apresenta justamente como o que lhe escapa. O indeterminado aqui não é o contrário do determinado, mas a manifestação fenomênica de uma das vias particularmente complexas do determinado. 72
Ao citar o “paralelismo” de Spinoza, Lacan queria certamente expressar que a realidade da psicose era uma só, uma totalidade ontológica que poderia ter dois aspectos distintos na sua apresentação, um orgânico e outro mental, mas que, objetivamente, só poderia ser compreendida de uma maneira unívoca: uma totalidade constituída pelo indivíduo e pelo seu próprio meio-ambiente.73 Vemos aqui, in nuce, a aquisição do pressuposto filosófico, jamais revisto, de que é factível juntar gêneros teóricos incompatíveis, como ciência e subjetividade. Mesmo quando desistiu do discurso científico, o problema ficou sendo do discurso da ciência, não da psicanálise, já que esta levava em consideração o inconsciente que a ciência tentava apagar.74
67. LACAN,J. 1975a, p. 254.
68. Cf. JASPERS,K.1973, p. 511.
69. “(…) De outro lado, existem psicoses resultantes de processos, encerrando conteúdo sem conexão compreensível alguma com a biografia, se bem que, como é natural, os conteúdos devam ser tirados da história anterior…”. Idem, p. 461.
70. Cf. LACAN,J. 1975a, pp. 72, 252, 314, 328.
71. Idem, p. 39: “O ato voluntário pode seguramente ser definido por um encadeamento causal mais complexo que o do ato reflexo.”
72. OGILVIE, B. 1993, p. 16.
73. Cf. LACAN,J. 1975a, p. 337.
Voltando ao nosso ponto, a noção de personalidade proporcionava na época uma guarida ideal para as premissas da psicologia concreta. A personalidade, constituída sob a clave de rivalidades e fixações é, afinal, figuração do próprio drama. Entretanto, ela não poderia resistir tão firmemente às suas exigências de determinabilidade e objetividade científica. A tentativa de circunscrição objetiva do incondicionado, como prevê Jaspers, deve arrefecer em grande medida os ânimos deterministas de qualquer um que haja sido afetado por esta vontade. A multiplicidade causal certamente dilui a fixidez da determinabilidade: na tese de Lacan, a personalidade paranóica, embora apresentada como univocidade causal da paranóia, era, na verdade, o resultado da concomitância de três tipos de causalidade: 75
(1) Tanto de causas ocasionais, ou processos orgânicos não específicos que determinam o desencadeamento de sintomas;
(2) como de causas eficientes, que são os determinantes estruturais, tais como as fixações inconscientes do indivíduo;
(3) e também de causas específicas que reuniam todos os fatores vivenciais concretos do eu do sujeito.
Como assegurar nessa diluição determinativa que o fundamento concreto era também o originário científico da personalidade? Estaria, obviamente, tudo muito mais fácil quando Lacan localizasse no eu uma só e objetiva “psicogênese concreta” para todas as patologias:
É Kojève leitor de Hegel quem fornece a Lacan o meio de formular a idéia de que a estrutura reacional do sujeito não está ligada a uma situação que a permitiu de maneira ocasional, mas de maneira essencial, na medida em que ela já a contém em si mesma; o sujeito não é anterior a esse mundo das formas que o fascinam: ele se constitui, antes de tudo, nelas e graças a elas. 76
Na realidade, ocorre que a noção politzeriana de “drama” definitivamente não se presta a ser qualquer coisa a mais que uma generalização de particularidades.77 O drama de Aimée são os seus conflitos particulares, as identificações rivalizadas que ela conformou em relação com seus coetâneos. O drama de Aimée é um drama paranóico, semelhante a outros dramas paranóicos. A palavra “drama” é compreendida, claro, sem as suas conotações emotivas e as suas ressonâncias românticas. Porém a intenção do uso técnico do termo é somente a de evitar que os fatos psicológicos sejam vistos em terceira pessoa. Todos os dramas são dramas pessoais, relativos a um eu, pois não há drama abstrato. O drama paranóico de Aimée não prevê nem constitui a forma necessária dos dramas paranóicos. Como no caso dos “jogos de linguagem” de Wittgenstein, há entre todos os dramas somente uma “semelhança de família”.78 Assim sendo, “o drama” confunde-se com os dramas particulares de Maria, de Pedro ou de João, e nada deles separa numa espécie de proposição universal abstrata. São descrições empíricas, não explicações hipotético-dedutivas de regularidades passíveis de serem convertidas em leis preditivas. Descrições empíricas são induções de particularidades que descrevem uma espécie de ocorrência, cuja inferência é tão legítima como qualquer outra realizada a respeito dos mesmos fenômenos. Não se trata de ciência no sentido clássico, mas de um conhecimento empírico. Por conseguinte, o movimento de Lacan em busca do determinismo específico do concreto ou da ciência da subjetividade é uma reflexão de segunda ordem para perguntar-se que espécie de descrição é o “drama”, como se pode defini-lo mais precisamente, quais as suas linhas mais gerais, e por quê e como acontece.
74. Cf. LACAN,J. 1991, pp. 44ss.
75. Idem, pp. 347-348.
76. OGILVIE,B1993, p. 110.
77. Cf. POLITZER,G. 1998, pp. 43, 67-69.
O que Lacan aspirava para as suas ambições científicas era, em definitiva, incorporar as suas causalidades concretas na própria definição de “drama”. Para propor uma nova noção nosográfica é preciso traçar as linhas gerais de todos os dramas particulares, é preciso achar um enredo79 para o drama em geral. É a “luta pelo puro prestígio”, o “desejo de reconhecimento”, o script geral kojeviano para a categoria de “drama”. Pois, do ponto de vista social, todo desejo é uma luta entre Senhor e Escravo, dominador e dominado, motor da história numa luta de classes sem fim, e, do ponto de vista do indivíduo, o desejo é a identificação do eu pelo outro, ou a introjeção subjetiva de conflitos que ocorrem no ambiente familiar e social do indivíduo. O desejo do desejo de Kojève comporta as linhas gerais e as características do que concretamente se denomina como “drama”, unifica o social e o individual sem ser abstrato, reúne em si causalidades eficientes e específicas, explica, de uma só penada, como tudo se origina pelo artifício da ontologia negativa.
Ogilvie comenta que se Lacan já houvesse lido Saussure na época da elaboração da tese sobre a personalidade paranóica, não analisaria o sentido dos fenômenos psíquicos, mas o seu valor.80 Claro, poderíamos acrescentar, ao passar do sentido ao valor, Lacan só estaria radicalizando a busca de objetividade e de circunscrição precisa do determinismo causal psicológico típico da psicologia concreta, a causalidade a posteriori.
Assim sendo, os primeiros frutos efetivos da relação de Lacan com a fenomenologia kojeviana já aparecem nos artigos sobre Os complexos familiares e sobre o Estádio do espelho,81 nos quais a velha idéia do narcisismo, do ideal do eu e da imagem do outro, antes lidas mediante as lentes da personalidade, eram agora recuperadas sob a clave da rivalidade, no qual o moi também se organiza como estrutura de desconhecimento. Mas aqui ainda não temos o que realmente nos importa, porque o Lacan desse período, ainda sob a influência de Politzer, não acreditava na possibilidade de um conceito rigoroso e objetivo de inconsciente, e pregava, em vez de um “retorno a Freud”, apenas um “retorno a Descartes”.82
78. Sobre o conceito de “semelhança de família” cf. WITTGENSTEIN,L,1953, § 67.
79. Osmyr Faria Gabbi Jr. me sugeriu a idéia de um “roteiro para o drama”.
80. POLITZER,G. 1998, p. 24.
81. Cf. respectivamente, LACAN,J. 2001b, pp. 23-84; e, 1966f, pp. 93-100.
Muito mais do que o Lacan que vai pouco a pouco absorvendo, digerindo e transformando a agonística kojeviana em psicogênese concreta, teremos, a partir da década de 50, a radicalização do ideal de ciência pela mistura entre kojevismo e formalismo lingüístico. Entre a “personalidade paranóica”, o “desejo como desejo do outro” e o “inconsciente estruturado como uma linguagem”, assistimos a exigências de rigor e determinabilidade causal cada vez mais fortes, uma vez que o fator explicativo negativizante trasveste-se em formalismo dos impasses da lógica.
A teoria lacaniana, porém, nunca traiu o ponto de vista pragmático da psicologia concreta politzeriana. Sua determinabilidade causal é sempre a posteriori, as hipóteses não pretendem constituir-se em proposições universais e necessárias do empírico, e o formalismo não é senão uma procura de eficácia na transmissibilidade da teoria, sem o comprometimento com a qualidade ou o conteúdo.
O Ideal de “Completude”
Lacan não tem a menor pretensão, como Kojève, de contar-nos uma história universal. Seu único objetivo é a subjetividade descrita de maneira determinística e rigorosa segundo o paradigma da psicologia concreta. Sua dialética tem um escopo muito mais restrito. No entanto, o modelo teórico é o mesmo: a negatividade constitutiva de um “eu” não empírico, mas transcendental, dividido e evanescente na sua irrevogável relação com o “outro”.
A grande vantagem do determinismo e do rigor teóricos pela via da negatividade constitutiva é poder, com ela, eludir o problema da substancialização dos objetos psicológicos. Temos, então, salva uma causalidade para os fenômenos particulares da subjetividade sem os embaraços decorrentes do atomismo ou do realismo presentes na visão da psicologia como processo mecânico independente do “eu”. Entretanto, é preciso abraçar uma visão “totalizante”, na qual tudo se explica pelo mesmo fator organizativo. Não há mais um “eu” independente do “outro”, nem um “mundo” sem a “linguagem”. “Eu”, “linguagem” e “mundo” são elementos que interagem dialeticamente pelo motor da negatividade. Um elemento não existe sem o outro, desligado do outro. Porém a visão holística tem uma fundamentação última: o “nada”, mascarado como miragem da ausência implicada pela presença da linguagem. Tal idealismo negativizado justifica como natural e impõe ao pensamento contradições e paradoxos não como parte de um jogo de linguagem, mas como efeito da própria forma da linguagem. Se a linguagem impõe formas ao conteúdo, não importa mais o sentido, pois a forma da linguagem atua de maneira autônoma, torna-se um terceiro elemento entre o “eu” e o “outro”.
82. Cf. LACAN,J. 1966e, p. 163. Em 1947, o “retorno a Descartes” significava entender o fenômeno da loucura como parte de uma “buscapela verdade”. Já em 1955, oito anos depois, o mote “o sentido de um retorno a Freud é um retorno ao sentido de Freud” (cf. LACAN,J. 1966g, p. 405) significava a inauguração de um programa de identificação da teoria lacaniana com a ortodoxia freudiana, que só arrefece em 1964, após a expulsão da IPA.
Deste modo, em Lacan, não é a negatividade que organiza o desejo. No esquema kojeviano adotado por Lacan, o desejo já é, em si, pura negatividade. A demanda, sim, é o elemento que se enforma em seu molde, mediante os recursos do simbólico. O sujeito aliena-se na demanda de amor, quando pergunta ao Outro “– Quem sou eu?” ou “– O que queres de mim?”: perguntas sem resposta que levam, necessariamente, a demanda ao fracasso.
O simbólico é claramente um limite do mundo, no sentido de que nem tudo pode ser dito. Isto não significa, no entanto, que o que não pode ser dito não possa ser, por outro lado, mostrado. O conceito de foraclusão aparece justamente para esclarecer que “o que é rejeitado no Simbólico reaparece no Real”.83 Existe, portanto, uma dialética do dizer/mostrar que engloba a relação real/simbólico/imaginário: “O furo real da privação é justamente uma coisa que não existe. O real, sendo pleno por natureza, para fazer um furo real é preciso introduzir um objeto simbólico.”84
O Real, assim, mostra-se pela interposição do simbólico, exatamente como o Nome-do-Pai interpõe-se ao Desejo da Mãe e instaura para a criança a lei do simbólico que lhe interdita o gozo e inaugura o desejo. O Real, lugar do corpo do Outro, esconde o objeto do desejo, a completude, a felicidade perdida que geralmente nos embarca em busca de realizar um ideal de completude. Do ponto de vista simbólico, porém, o Real é o “não-todo”.
A compreensão do desejo pela negatividade nos obriga a negociar com o simbólico. O Real, sempre presente na concepção idealista da linguagem, na medida em que ele “não cessa de não se escrever”, indica as suas falhas. A linguagem, quando diz, mostra o que não diz: precisamente o que foi por ela excluído. Lacan muitas vezes utilizou a seu favor o raciocínio fregeano da equinumericidade para demonstrar que a escritura de uma seqüência lógica faz-se às custas da exclusão da falta: o número “1” conta-se a partir do conjunto vazio. Esta estranha torção da lógica fregeana, justamente aquela que condenava a psicologia como a explicação menos apropriada para a matemática, é utilizada para apoiar o raciocínio de que a falta constitui a ordem.85 Porém, do ponto de vista de uma concepção idealista da linguagem, não há nenhum problema, pois uma “torção” não é, concretamente, algum erro ou vício.
Deste modo, o que não existe faz-se presente pelo que existe. Nada fica, em realidade, de fora, e nada fica, aparentemente, substancializado. A própria negatividade garante a dessubstancialização das entidades psicológicas, dos operadores do desejo lacaniano. Nada garante, no entanto, que a forma da linguagem não acabe por se tornar mais real do que o próprio ser humano.
83. LACAN,J., 1981, p. 57. A “foraclusão” será enunciada depois, no seminário de 04/07/1956, p. 361.
84. LACAN,J., 1994, p. 250.
85. Cf. por exemplo, a lição de 28/11/1962 de LACAN,J. 1961 ou a lição de 04/05/1972 de LACAN,J., 1972.
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