Arquivo mensal: abril 2008
A CASA DO PORÃO AO SÓTÃO
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Aqui, o conceito de imaginação material, proposto por Gaston Bachelard (filósofo da descoberta científica e da criação artística), inova e ultrapassa a tradição filosófica, o fundamento ocularista do conhecimento e a imaginação formal, prisioneira da abstração e do formalismo. Tal conceito é a singular contribuição de Bachelard para os estudos acerca do imaginário e para a estética filosófica contemporânea. A casa, como imaginação material, é de fundamental importância na vida de todo ser humano.
A imaginação formal valoriza o modelo teórico matemático e a formalização lógico-empírica da tradição aristotélica, cartesiana e positivista das ciências naturais. Centrada no sentido da visão, ela resulta no exercício constante da abstração. O homem é um espectador passivo e ocioso em relação ao mundo que o rodeia.
Já a imaginação material, o homem é um agente ativo em conflito com os elementos da matéria; é uma filosofia ativa das mãos, provocada e provocante por um universo sólido e concreto. É a imaginação dos trabalhadores-artistas que modelam o mundo através de suas vontades de poder.
Nesse sentido, BACHELARD aproxima-se de Nietzsche, que pensa a marteladas, a quem considera um pensador aéreo, em virtude de suas imagens vertiginosas e abissais.
Abaixo, transcrevemos texto, de Bachelard, extraído de seu livro POÉTICA DO ESPAÇO.
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A casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade. O espaço compreendido pela imaginação da casa não é o espaço indiferente abandonado à medida e reflexão do geômetra. É vivido. É vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação; esta imagina incessantemente e se enriquece de novas imagens. Daí reimaginarmos constantemente a realidade da casa: distinguir todas as imagens seria revelar a alma da casa; seria desenvolver uma verdadeira psicologia da casa.
Para pôr em ordem essas imagens, é preciso, acreditamos, enfocar dois temas principais de ligação:
1) A casa é imaginada como um ser vertical. Ela se eleva. Ela se diferencia no sentido de sua verticalidade. É um dos apelos à nossa consciência de verticalidade;
2) A casa é imaginada como um ser concentrado. Ela nos convida a uma consciência de centralidade.
Esses temas estão sendo enunciados, sem dúvida, bem abstratamente. Mas não é difícil reconhecer-lhes o caráter psicologicamente concreto através de exemplos.
A verticalidade é assegurada pela polaridade do porão e do sótão. As marcas dessa polaridade são tão profundas que abrem, de alguma forma, duas perspectivas muito diferentes para uma fenomenologia da imaginação. Com efeito, quase sem comentário, pode-se opor a racionalidade do telhado à irracionalidade do porão. O telhado revela imediatamente sua razão de ser: cobre o homem que tem medo da chuva e do sol. Os geógrafos não deixam de lembrar que, em cada país, a inclinação do telhado é um dos sinais mais seguros do clima. “Compreende-se” a inclinação do telhado. O próprio sonhador sonha racionalmente; para ele, o telhado pontiagudo corta as nuvens. Todos os pensamentos que se ligam ao telhado são claros. No sótão, vê-se, com prazer, a forte ossatura dos vigamentos. Participa-se da sólida geometria do carpinteiro.
Para o porão também encontramos, sem dúvida, utilidade. Nós o racionalizamos enumerando suas comodidades. Mas ele é em primeiro lugar o ser obscuro da casa, o ser que participa das potências subterrâneas. Sonhando com ele, concordamos com a irracionalidade das profundezas.
Nós nos tornaremos sensíveis a essa dupla polaridade vertical da casa, se nos tornarmos sensíveis à função de habitar até o ponto de fazer disso uma réplica imaginária da função de construir. Os andares mais altos, o sótão, o sonhador os “edifica”, e os reedifica bem edificados. Com os sonhos na altitude clara estamos, repitamo-lo, na zona racional dos projetos intelectualizados. Mas o habitante apaixonado aprofunda o porão cada vez mais, tornando-lhe ativa a profundidade. O fato não basta, o devaneio trabalha. Ao lado da terra cavada, os sonhos não têm limite. Revelaremos em seguida devaneios de além-porão. Fiquemos inicialmente no espaço polarizado pelo porão e pelo sótão e vejamos como esse espaço polarizado pode servir para ilustrar os matizes psicológicos mais sutis.
Eis como o psicanalista C. G. Jung se serve da imagem dupla do porão e do sótão para analisar os medos que moram na casa. Encontraremos no livro de Jung: L’Homme à la Découverte de Son Âme (O Homem na Descoberta de Sua Alma), tradução francesa, uma comparação que deve tornar clara a esperança que tem o ser consciente “de aniquilar a autonomia dos complexos desbatizando-os”. A imagem é a seguinte: “A consciência se comporta então como um homem que, ouvindo um barulho suspeito no porão, se precipita para o sótão para constatar que aí não há ladrões e que, por conseqüência, o barulho era pura imaginação. Na realidade, esse homem prudente não ousou aventurar-se ao porão”.
À medida que a imagem explicativa empregada por Jung nos convence, nós, leitores, revivemos fenomenologicamente os dois medos: o medo no sótão e o medo no porão. Em lugar de enfrentar o porão (o inconsciente), “o homem prudente” de Jung busca coragem nos alibis do sótão. No sótão, camundongos e ratos podem fazer seu alvoroço. Quando o dono da casa chegar, eles voltarão ao silêncio de seu buraco. No porão seres mais lentos se agitam, menos apressados, mais misteriosos. No sótão, os medos se “racionalizam” facilmente. No porão, mesmo para um ser mais corajoso que o homem evocado por Jung, a “racionalização” é menos rápida e menos clara; não é nunca definitiva. No sótão, a experiência do dia pode sempre apagar os medos da noite. No porão há escuridão dia e noite. Mesmo como uma vela na mão, o homem vê as sombras dançarem na muralha negra do porão.
Se seguirmos a inspiração do exemplo explicativo de Jung até a apreensão total da realidade psicológica, iremos achar uma cooperação possível entre a psicanálise e a fenomenologia, cooperação que será preciso sempre acentuar se quisermos dominar o fenômeno humano. De fato, é preciso compreender fenomenologicamente a imagem para lhe dar uma eficácia psicanalítica. O fenomenólogo aceitará aqui a imagem do psicanalista com uma inclinação receosa. Reviverá a primitividade e a especificidade dos medos. Em nossa civilização que põe luz em todos os cantos, que põe eletricidade no porão, não se vai mais ao porão segurando vela. O psicanalista não pode ficar na superficialidade das metáforas ou comparações e o fenomenólogo deve ir até o fundo das imagens. Aqui, longe de reduzir e de explicar, longe de comparar, o fenomenólogo exagerará o exagero. Então, se lerem os Contos de Edgar Poe, o fenomenólogo e o psicanalista poderão compreender juntos o valor de sua mútua colaboração. Os contos são medos da infância que se cumprem. O leitor que se “dá” à sua leitura ouvirá o gato maldito, sinal de faltas não-remidas, miar atrás do muro. O sonhador de porões sabe que as paredes do porão são paredes enterradas, paredes com um lado só, que têm toda a terra do outro lado. E por isso o drama aumenta, e o medo se exagera. Mas o que será um medo que deixa se exagerar?
Numa tal inclinação medrosa, o fenomenólogo aguça os ouvidos, como escreve o poeta Thoby Marcelin, “até as raias da loucura”. O porão é pois a loucura enterrada, drama murados. As narrações dos porões criminais deixam na memória marcas indeléveis, marcas a que não gostamos de nos referir; quem desejaria reler A Barrica de Amontillado? O drama é muito fácil aí, mas explora os medos naturais, medos que existem na dupla natureza do homem e da casa.
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________CASA DE MEUS AVÓS__________
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Mas sem fazer um relatório dos dramas humanos, vamos estudar alguns além-porões que provam facilmente que o sonho do porão aumenta invencivelmente a realidade.
Se a casa do sonhador está situada na cidade, não é raro que o sonho seja de dominar, pela profundidade, os porões da vizinhança. Sua moradia deseja os subterrâneos dos castelos-fortes da lenda em que misteriosos caminhos faziam comunicar por baixo de todos os recintos fechados, de todas as muralhas, de todos os fossos, o centro do castelo com a floresta distante. O castelo plantado no alto da colina tinha raízes numa rede de subterrâneos. Que poder para uma simples casa ser construída sobre um emaranhado de subterrâneos!
Nos romances de Henri Bosco, grande sonhador da casa, encontramos tais além-porões. Sob a casa de L’Antiquaire (O Antiquário), se encontra “uma rotunda arqueada de onde se abrem quatro portas”. Das quatro portas saem corredores que dominam de alguma forma os quatro pontos cardeais de um horizonte subterrâneo. A porta do leste se abre e então “subterraneamente vamos muito longe, sob as casas desse quarteirão…” As páginas trazem a marca de sonhos labirínticos. Mas aos labirintos dos corredores onde existem um “ar pesado” se associam rotundas e capelas, os santuários do segredo. Assim o porão de L’Antiquaire é, por assim dizer, oniricamente complexo. O leitor deve explorá-lo com sonhos capazes de abranger o sofrimento dos corredores e o espanto pela existência de palácios subterrâneos. O leitor pode perder-se aí (no sentido próprio e no figurado). A princípio não vê claramente a necessidade literária de uma geometria tão complicada. É aqui que o estudo fenomenológico vai revelar sua eficácia. O que aconselha então a atitude fenomenológica? Pede-nos que criemos em nós um orgulho pela leitura que nos dê a ilusão de participar do trabalho de criação do livro. Tal atitude não se pode assumir facilmente na primeira leitura. A primeira leitura é feita com excessiva passividade. O leitor é ainda um pouco criança, uma criança que a leitura distrai. Mas todo livro bom, mal acabado de ler, vede ser relido imediatamente. Depois do esboço que é a primeira leitura, vem a obra da leitura. É preciso então conhecer o problema do autor. A segunda leitura, a terceira…, nos ensinam pouco a pouco a solucionar esse problema. Insensivelmente, temos a ilusão de que o problema e a solução são os nossos. Esse matiz psicológico: “Devíamos ter escrito isso”, nos faz posar como fenomenólogo da leitura. Enquanto não ascendermos a esse matiz, ficaremos sendo psicólogo ou psicanalista.
Qual é então o problema literário de Henri Bosco na descrição do além-porão? É concretizar uma imagem central do romance que é, em sua linha geral, o romance das intrigas subterrâneas. Essa metáfora usada é aqui ilustrada por porões múltiplos, por uma rede de galerias, por um grupo de celas com portas muitas vezes trancadas a cadeado. Meditamos então sobre os segredos; preparamos projetos. E a ação, debaixo da terra, se encaminha. Estamos realmente no espaço íntimo das intrigas subterrâneas.
É em tal subsolo que os antiquários que dirigem o romance pretendem ligar destinos. O porão de Henri Bosco com ramais geométricos é um tecedor do destino. O herói que conta suas aventuras traz consigo um anel do destino, um anel cuja pedra é marcada com sinais de uma idade antiga. O trabalho propriamente subterrâneo, propriamente infernal, dos Antiquários irá fracassar. No momento em que dois grandes destinos do amor iam afogar-se, morreu no cérebro da casa maldita uma das mais belas sílfides do romancista, um ser do jardim e da torre, o ser que devia dar a felicidade. O leitor um pouco atento ao acompanhamento de poesia cósmica sempre ativa sob a narrativa psicológica dos romances de bosco, tal leitor terá em muitas páginas do livro testemunhos do drama do aéreo e o terrestre. Mas, para viver tais dramas, é preciso reler, é preciso poder deslocar o interesse ou ler com o duplo interesse do homem e das coisas, não negligenciando nada do tecido antropocósmico de uma vida humana.
Numa outra moradia a que nos conduz o romancista, o além-porão não está mais sob o signo dos lúgubres projetos dos homens infernais. Ela é realmente natural, inscrita na natureza de um mundo subterrâneo. Vamos viver, seguindo Henri Bosco, uma casa com raízes cósmicas.
Essa casa com raízes cósmicas vai-nos aparecer como uma planta de pedra que cresce do rochedo até o azul de uma torre.
O herói do romance L”Antiquaire surpreendido numa visita indiscreta teve que se meter no subsolo de uma casa. Mas, imediatamente, o interesse da nrrativa real passa à narrativa cósmica. As realidades servem aqui para expor os sonhos. A princípio, estamos ainda no labirinto dos corredores talhados na pedra. Depois, subitamente, é encontrada uma água noturna. Então, a descrição dos acontecimentos do romance é, para nós, suspensa. Não recebemos a recompensa da página se não participamos com nossos sonhos da noite. Com efeito, um grande sonho que tem a sinceridade dos elementos se intercala na narrativa. Leiamos este poema do porão cósmico:
“Aos meus pés a água saía da escuridão.
“A água!… um lago imenso!… e que água!… Uma água negra, parada, tão perfeitamente plana que nenhuma ruga, nenhuma bolha de ar, turvava a superfície. Nenhuma fonte, nenhuma origem. Estava aí havia milênios, represada pelas rochas, e se estendia num único lençol insensível e se tornara, na sua ganga de pedra, a própria pedra negra, imóvel, cativa do mundo mineral. Desse mundo opressor ela suportara a massa esmagante, o acúmulo enorme. Sob esse peso, dir-se-ia que ela mudara de natureza, infiltrando-se nas fissuras das lajes de calário que lhe guardavam o segredo. Transfoprmara-se dessa forma no elemento fluido mais denso da montanha subterrânea. Sua opacidade e consistência insólitas faziam-na como que matéria desconhecida e carregada de fosforescências de que só afloravam à superfície fulgurações fugidias. Sinais dos poderes obscuros em repouso nas profundezas, essas colorações elétricas manifestavam a vida latente e o temível poder desse elemento ainda adormecido. Eu tremia”.
Esse calafrio, sentimo-lo bem, não é mais um medo humano, é um medo cósmico, um medo antropocósmico que faz eco à grande lenda do homem diante das situações primitivas. Do porão talhado na rocha no subterrâneo, do subterrâneo à água parada, passamos do mundo construído ao mundo sonhado; passamos do romance à poesia. Mas o real e o sonho são agora uma unidade. A casa, o porão, a terra profunda encontram uma totalidade pela profundidade. A casa se transformou num ser da natureza. Está solidária com a montanha e as águas que trabalham a terra. A grande planta de pedra que é a casa cresceria mal se não tivesse as águas dos subterrâneos na sua base. Assim vão os sonhos em sua grandeza sem limite.
A página de Bosco por seu sonho cósmico traz ao leitor uma grande tranqüilidade de leitura pedindo-lhe para participar da tranquilidade que dá todo o onirismo profundo. A narrativa fica agora num tempo suspenso propício ao aprofunadamento psicológico. Agora, a narrativa dos acontecimentos reais pode ser retomada: recebeu sua provisão de cosmicidade e de sonho. De fato, além da água subterrânea, o porão de Bosco encontra suas escadas. A descrição, depois da pausa poética, pode desenrolar de novo seu itinerário: “Uma escada afundava na rocha e, subindo, serpenteava. Era estreita e abrupta. Segui-a”. Por essa escada em caracol, o sonhador sai das profundezas da terra e entra nas aventuras do alto. Com efeito, no fim de tantos desfiladeiros tortuosos e estreitos, o leitor desemboca numa torre. Essa torre é a torre ideal que encanta todo o sonhador de uma moradia antiga: é “perfeitamente redonda”; cercada por uma “luz tênue” que entra “por uma janela estreita”. E o teto é em abóbada. Que grande princípio de sonho da intimidade é um teto em abóboda! Reflete sempre a intimidade em seu centro. Não nos surpreendemos se o quarto da torre for a moradia de uma doce jovem e se for habitado pelas lembranças de um antepassado apaixonado. O quarto circular e em abóbada está isolado nas alturas. Guarda o passado assim como domina o espaço.
Sobre a missal da jovem, missal que vem de ancestral distante, pode-se ler a divisa:
A flor fica sempre na semente.
Por essa divisa admirável, eis a casa, eis o quarto marcado por uma intimidade inesquecível. Haverá imagens de intimidade mais condensada, mais certa de seu centro que o sonho do porvir de uma flor ainda fechada e encolhida em sua semente? Como se há de querer que não a felicidade, mas a antefelicidade, permaneça fechada no quarto circular!
Assim, a casa evocada por Bosco vai da terra ao céu. Tem a verticalidade da torre elevando-se das mais terrestres e aquáticas profundezas até a morada de uma alma crente no céu. Tal casa, construída por um escritor, ilustra a verticalidade do humano. E é oniricamente completa. Dramatiza os dois pólos dos sonhos da casa. Faz a caridade de uma torre àqueles que talvez nem tenham conhecido um pombal. A torre é a obra de outro século. Sem passado, não é nada. Que zombaria é uma torre nova! Mas os livros estão aí para nos darem mil moradas aos nossos devaneios. Na torre dos livros, quem não viveu horas românticas? Essas horas voltam. O devaneio tem necessidade disso. Na pauta de uma vasta leitura tocante à função de habitar, a torre é uma nota para os grandes sonhos. Quantas vezes, desde que eu li L’Antiquaire, fui habitar a torre de Henri Bosco!
A torre e os subterrâneos das além-profundezas se alongam pelos dois sentidos da casa que acabamos de estudar. Essa casa é, para nós, uma ampliação da verticalidade das casas mais modestas que da mesma forma, para satisfazer nossos devaneios, têm necessidade de se diferenciar em altitude. Se tivéssemos que ser o arquiteto da casa onírica, hesitaríamos entre a casa de três e a de quatro pisos. A casa de três, a mais simples com referência à altura essencial, tem um porão, um pavimento térreo e um sótão. A casa de quatro pisos tem um andar entre o pavimento térreo e o sótão. Um andar a mais, um segundo andar, e os sonhos se confundem. Na casa onírica, a topoanálise só sabe contar até três ou quatro.
De um até três ou quatro ficam as escadas. Todas diferentes. A escada que vai até o porão, descemo-la sempre. É a sua descida que fixamos em nossas lembranças, é a descida que caracteriza o seu onirismo. A escada que sobe ao quarto, nós a subimos ou a descemos. É uma via mais banal. É familiar. O menino de doze anos faz escadas de subida, ensaiando lances de três e de quatro degraus, tentando lances de cinco, mas gostando mais de subir de quatro em quatro. Subir uma escada de quatro degraus, que felicidade para os músculos!
Enfim, a escada do sótão mais abrupta, mais gasta, nós a subimos sempre. Há o sinal de subida para a mais tranquila solidão. Quando volto a sonhar nos sótãos de outrora, não desço mais.
A psicanálise encontrou o sonho da escada. Mas como precisa de um simbolismo globalizante para fixar sua interpretação, a psicanálise deu pouca atenção à complexidade da miscelânea do devaneio com a lembrança. Eis por que, nesse ponto, como em outros, a psicanálise está mais apta a estudar os sonhos que o devaneio. A fenomenologia do devaneio pode desmontar o complexo da memória e da imaginação. Ela se torna necessariamente sensível às diferenciações do símbolo. O devaneio poético, criador de símbolos, dá à nossa intimidade uma atividade polissimbólica. E as lembranças se depuram. A casa onírica, no devaneio, atinge uma sensibilidade extrema. Às vezes, alguns degraus inscreveram na memória uma pequena desnivelação da casa natal. Tal quarto não é somente uma porta, é uma porta e três degraus. Quando nos pomos a pensar no detalhe da altura da velha casa, tudo o que sobe e desce começa a viver dinamicamente. Não podemos ser mais um homem de um só andar, como dizia Joë Bousquet: “É um homem de um só andar: tem seu porão em seu sótão.
Mas, então, se nos perguntassem qual benefício mais precioso da casa, diríamos: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa nos permite sonhar em paz. Somente os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos. Ao devaneio pertencem os valores que marcam o homem em sua profundidade. O devaneio tem mesmo um privilégio de autovalorização. Ele desfruta diretamente seu ser. Então, os lugares onde se viveu o devaneio se reconstituem por si mesmos num novo devaneio. É justamente porque as lembranças das antigas moradias são revividas como devaneios que as moradias do passado são em nós imperecíveis.
A casa, portanto, é um dos maiores poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio que faz a ligação é o devaneio. O passado, o presente e o futuro dão à casa dinamismo diferentes, dinamismos que freqüentemente intervêm, às vezes se opondo, às vezes estimulando-se um ao outro. A casa, na vida do homem, afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. Ela é o corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser “atirado ao mundo”, como o professam os metafísicos apressados, o homem é colocado no berço da casa. E sempre, em nossos devaneios, a casa é um grande berço. Uma metafísica concreta não pode deixar de lado esse fato, esse simples fato, na medida em que esse fato é um valor, um grande valor ao qual voltamos em nossos devaneios. O ser é imediatamente um valor. A vida começa bem; começa fechada, protegida, agasalhada no seio da casa.
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Fontepesquisada:(Gaston Bachelard, OS PENSADOES, Editora Abril, 1982); (Gaston Bachelard: e a metapoética dos quatro elementos. Acessado em: <https://gastonbachelard.org/wp-content/uploads/2015/11/29-108-1-PB.pdf>)
POSTED SELETINOF 7:57 PM
O CÉREBRO, O PAU E A PEDRA & O HOMEM MODERNO, À LUZ DA CIÊNCIA NATURAL
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Abaixo, postamos dois textos: o primeiro, extraído da obra de Herbet Wendt, À PROCURA DE ADÃO, e, o segundo, da obra de Fritz Kahn, O LIVRO DA NATUREZA. Nossa intenção foi, numa abordagem integral sobre o ser humano, vislumbrar os aspectos evolutivo e psicológico mediante uma contextualização recíproca. Os dois textos são surpreendentes pela atualidade. Ainda, acrescentamos dois pontos de vista muito importantes: uma de M. D. Magno (psicanálise freudiana) e outra de Edward C. Whitmont (psicanálise junguiana).
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O CÉREBRO, O PAU E A PEDRA
Por Herbet Wendt
Há muito tempo que os animais fazem uso de grande parte das habilidades técnicas que tornaram o homem o senhor da Terra. As térmitas e as formigas fazem construções artificiais e criam plantas e animais domésticos. As aves e os castores são arquitetos geniais. Os insetos são dotados de olhos que podem comparar-se aos nossos telescópios e microscópios. Os morcegos criaram o primeiro radar, as lulas, a primeira propulsão a foguete. Nenhum submarino pode competir com um tubarão e nenhum avião a jato com um andorinhão.
Mas num ponto a técnica animal se distingue fundamentalmente da técnica do homem: o aparelho técnico dos animais é seu próprio corpo. Cada técnico animal tornou-se especialista no seu próprio domínio, tornou-se foguete, radar ou avião vivo, tendo-se encadeado a determinado aparelho como um escravo das galeras. Os outros mundos estão fechados para ele. Nem mesmo aqueles caranguejos, insetos, peixes e aves que utilizam objetos estranhos como instrumentos transpõem as fronteiras que lhes foram traçadas. Eles não o podem fazer, porque se aferraram demasiado ao seu setor original. Só a mais maravilhosa de todas as aquisições do reino animal, a do grande cérebro desenvolvido, aliado ao surgimento da linguagem simbólica, possibilitou a um grupo de seres relativamente pouco especializados a capacidade de quebrar as cadeias, constituir instrumentos complicados de matéria-prima bruta e com eles conquistar o mais vasto espaço vital.
Segundo uma expressão de Freud, o homem é um deus da prótese. Ele foi uma criatura que submeteu as coisas do meio ao seu serviço; ele próprio não é mais um aparelho, em vez disso, constrói aparelhos técnicos que aliviam o corpo. Fisicamente retrogradou, mas seus aparelhos aperfeiçoaram-se. Sem eles, hoje ele seria nu e indefeso como um marisco fora da concha.
A massa cinzenta de células do novo cérebro, essa substância decisiva para o mundo e criadora de mundos, já existe em todos os mamíferos. No homem, porém, ela se tornou a estação central que controla os próprios órgãos e as condições do meio e toma decisões independentes. O homem pensa e julga; ele foi expulso do abrigo quente da existência animal para o frio gélido da auto-responsabilidade (Ele foi expulso do Jardim do Éden!). Seu corpo, porém, e seu cérebro antigo ficaram para trás no estádio da animalidade; o animal em nós não pode ser suplantado, e este conflito faz do homem, como diriam os psicanalistas, uma criatura esquizóide, em cujo peito habitam duas almas.
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Todos os primatas, os lêmures, o grande exército dos macacos autênticos e os antropóides já apresentam esses traços esquizóides de caráter. Dir-se-ia que não mais querem ser animais. E, com efeito, olhados sob o ponto de vista psíquico e intelectual, eles não o são mais propriamente naquele sentido do resto dos mamíferos. Quando o macaquinho dum tocador de realejo coleta dinheiro para o seu dono, escreve Fritz Kahn em seu Livro da Natureza, ele o faz com gestos humanos e um olhar que nunca se poderá esquecer ainda que se passem cinqüenta anos e nesse tempo se tenham fitado os olhos por vezes leais, mas na maioria dos casos, falsos, de vinte mil homens. Nesse olhar profunadamente melancólico do macaco, que diz mais do que dez frases decoradas dum garoto pedinte, estão estas palavras significativas: os primatas não são animais. O que ali se nos depara é algo mais do que existe no mais fiel dos cachorros: através daqueles olhos nós vemos a alma dum ser que ficou no meio do caminho para a humanização, como a ondina que Gottfried Keller presumiu ver no gêlo do lago gelado debaixo de si: “Com sufocada angústia ela tateava aqui e além sob a dura camada”.
Essa inquietação intelectual, essa ânsia e esse tatear levaram alguns primatas, que não se haviam adaptado pacificamente a uma vida de acrobatas vegetarianos, às descampadas savanas. Aí tiveram de erguer-se, tiveram de correr sobre duas pernas. As mãos ficaram livres para outras atividades. O cérebro cada vez maior impelia-os a fazerem diversas experiências. Espalhados pelas estepes havia paus e ossos… eles podiam apanhá-los e com sua ajuda derrubar frutos das árvores. Alguns paus não tinham grande utilidade e eram jogados fora, outros serviam ao objetivo, eles apanhavam-nos e ficavam satisfeitos com eles. Assim começou a história da civilização… tavez há vinte milhões de anos, no tempo do procônsul, talvez pouco antes do advento dos seres de Taungs e Makapansgat.
Um pau é um instrumento magnífico. Ele prolonga o braço e dá ao seu possuidor um sentimento de orgulhosa superioridade. O primata torna-se senhor. Se outro animal se lhe atravessa ou até quer apanhar um fruto que ele deseja, basta-lhe pegar no pau e brandi-lo… o animal não se mexe mais, está morto, afastado para sempre do campo da luta pela existência. Aumenta a consciência de superioridade do possuidor do pau. Ele lhe permite divertir-se incutindo terror nas outras criaturas. Torna-se arrogante, cruel, tirânico. O sangue dos mortos suja-lhes as mãos. Ele lambe, o gosto lhe agrada. Talvez já tenha antes devorado diversos animaizinhos, como fazem muitos macacos. Agora ele conhece o prazer da caça e o gosto da carne. E os primeiros animais que começa a perseguir e abater sistematicamente – depois dos insetos, caranguejos, lagartos e roedores – são logicamente os seus parentes mais indefesos, os primatas inferiores. Encontra-se com eles diariamente. Cinocéfalos e outros macacos ficam empoleirados nas árvores de onde tiram o seu sustento; é fácil para ele abatê-los a paulada, e não tarda a verificar que o cérebro deles é especialmente saboroso. Apodera-se dele um sentimento completamente novo das coisas. Experimenta os mais diversos métodos de caça, arremessa paus e pedras, junta-se com parceiros hábeis para perseguir e encurralar os animais de presa, e descobre por fim que uma estilha de osso vibrado com violência, pode trespassar um animal.
Aquele que pode fazer todas estas coisas não mais se sente animal. Olha com desprezo os antropoides comedores de frutas, capazes, quando muito, de apanhar um pássaro no ninho ou de matar uma perereca, aproveitando todas as oportunidades para mostrar o seu poderio aos bons chimpanzés primitivos. Estes, embora fisicamente se igualem a ele, temem o pau, como milhões de anos mais tarde os tímidos indígenas de terras recém-descobertas virão a temer as armas de fogo dos conquistadores brancos. Um profundo abismo se abriu entre o habitante das savanas, capaz de empregar a recém-adquirida razão para o bem e para o mal, e os primatas da floresta virgem, que conservaram a sua primitiva inocência intelectual. E, quanto mais o homem prova da árvore do conhecimento, mais largo se torna esse abismo.
A velha concepção histórica do tempo de Darwin de que os nossos antepassados animais eram bárbaros e imorais e só pouco a pouco, graças a um esforço continuado, atingiram a moralidade, não passa de uma bonita lenda. Hoje pensa-se diferente. A esse respeito escreveu, com notável franqueza, o antropologista americano Hooton: Não vejo por que, olhando um macaco nos olhos, qualquer homem possa pretender algum parentesco com ele, baseado nas suas maneiras. Todo macaco que se preza rejeitaria qualquer pretensão a uma origem comum com o homem. Uma amarga verdade. Quando aumentaram as células cinzentas do grande cérebro dos primatas de porte ereto, quando mãos hábeis empunharam o varapau, a humanidade tomou um caminho obscuro e perigoso. Esse caminho não é ladeado apenas por ações intelectuais, descobertas, invenções e realizações culturais, mas também por maldades morais, violências e crimes. Do esquizóide animal superior resultou um ser que traz em si o céu e o inferno.
Enquanto os antropologistas ainda não se tinham decidido sobre se os sul-africanos deviam ser considerados macacos ou homens, Weinert escrevia esta frase que tem sido freqüentemente citada: Nenhum macaco mata, assa e devora os membros da própria espécie: isso é humano. E acrescentou: Era bonito considerar o ato de Prometeu como o primeiro da humanidade nascente; mas nós não podemos deixar de antepor-lhe o ato de Caim. É duro, mas, em princípio, é certo. Os velhos mitos que falam da origem da raça humana dizem exatamente isso.
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NOSSA ESPÉCIE
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“Nossa ESPÉCIE, ao invés de EVOLUIR biologicamente segundo a Teoria da Evolução de Darwin (ou melhor, o homem ao invés de transformar-se corporalmente num monstro capaz de ter todas as faces e a qualquer hora ser capaz de trocar de cor, trocar de sexo, trocar de cabelo, etc.), ela simplesmente começou a secretar um POSTIÇO que é capaz de mapear as coisas mesmo que não possa transformá-las. E tal postiço são as linguagens, isto é, as línguas que a gente fala, todos os aparelhos discursivos de invenção, de ciência, de filosofia, de religião, etc. Mas, denominamos este postiço de SECUNDÁRIO, pois, apesar dele ter a mesma estrutura do PRIMÁRIO originário da NATUREZA, é ‘software’ e não ‘hardware’. Então, secretando esse software, secretando esse postiço, o homem pode fazer mil conjecturas até achar uma LINGUAGEM (regra, modelo, teoria) que fica parecido com o funcionamento da coisa dura lá do primário e intervir neste através desse conhecimento, dessa linguagem, desse modelo, dessa teoria. É assim que tem funcionado. Portanto, nós somos ‘MACACOS’ inteiramente primários constituídos de matéria (mas somos piradinhos, não queremos o assim, queremos o assado, também, ou pelo menos gostaríamos de querer) que, através da aplicação de um postiço sobre um primário dado, conseguimos transformá-lo quando temos PODER para isto, potência para isto, força para isto, condições para isto, quando podemos pagar o preço da TRANSFORMAÇÃO.”
Magno Machado Dias – MD Magno ……………………………….
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Em seu esboço de uma teoria da evolução, Herder havia perguntado: Que é que falta ao animal mais semelhante ao homem (o macaco) que não pôde tornar-se homem? No século XX, a pergunta foi invertida: Que falta ao homem que não pôde permanecer animal! Falta-lhe muito, segundo verificou a ciência. Ele é precisamente um a “criatura falha”, sem adaptações especiais nem equipamentos particulares, forçada a criar para si instrumentos e roupa que os animais recebem da natureza. Não é completo, fixo num determindado trilho como um antropóide adulto – permanece a vida inteira um ser em evolução. E isso é um traço tipicamente infantil. O filhote de animal evolui, explora com curiosidade o seu ambiente e aperfeiçoa-se nele; o animal adulto, ao contrário, “é”, quase não aprende mais nada.
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Herbert Wendt
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Também sob o ponto de vista físico o homem conserva ainda numerosas particularidades que no macaco se apresentam apenas como caracteres embrionários ou infantis: a falta de pêlos e de pigmentação e as proporções da cabeça. A isso se referiu o anatomista holandês Ludwig Bolk, quando, em 1926 escreveu um livro intitulado “O Problema da Evolução Humana”. Era um livro notável. Bolk afirmava que a evolução humana, vista sob o ponto de vista anatômico, fôra, não um progresso, mas uma regressão. Havia mutações que provocavam entraves e podiam condenar os seres afetados a se manterem num estádio infantil até à velhice. E o homem cristalizou-se após uma série de mutações desse tipo. Mesmo quando adulto ele apresenta ainda caracteres da primeira fase juvenil de seus antepassados animais. Segundo Bolk, o homem permaneceu, pois, no estádio dum embrião de macaco (um embrião de chimpanzé primitivo), evitou uma evolução especializada e só por isso pôde atingir uma universalidade que nenhum outro animal pode igualar.
A teoria de Bolk não era uma idéia sem base. Existem no reino animal diversos casos de neotena, ou seja, um prolongamento do estado de larva ou de juventude para lá da puberdade e até ao fim da vida. O exemplo conhecido mais típico desse fenômeno é uma salamandra mexicana: o axolotl. Os zoologistas conhecem esta estranha criatura desde a descoberta da América. Tem o aspecto de uma grande larva de salamandra com brânquias, mas reproduz-se em sua forma larvar e a conserva – pelo menos assim se acreditou até ao ano de 1865 – durante toda a sua vida. Cuvier, Alexander von Humboldt e muitos outros pesquisadores já haviam meditado sobre o mistério do axolotl; o que se dava com ele realmente só se verificou quando, em 1965, no Jardim des Plantes, alguns filhotes de axolotl, que viviam em água rasa, perderam de repente as brânquias, as rugosidades sobre as costas e a cauda e se transformaram em verdadeiras salamandras de terra firme. Depois disso, começaram a fazer-se por toda parte tentativas para apressar essa transformação por meio da ablação das brânquias e de modificações radicais das condições de vida. E, com efeito, dentro em pouco o zoologista francês Duméril, o geneticista alemão Weismann e, sobretudo, a Senhorita Marie von Chauven, de Freiburg, conseguiram fazer artificialmente da salamandra aquática, de forma larvar e dotada de brânquias, uma salamandra de terra com respiração pulmonar.
O axolotl – salamandra neotenic – fôra, portanto, obrigado a realizar uma evolução regressiva devido a modificações em suas condições de vida: não se tinha transformado mais em anfíbio perfeito, habitante de terra firme, como aconteceu com a salamandra, conservou-se no seu estádio larvar infantil. Mais tarde observou-se fenômeno semelhante em outros batráquios diversas espécies de insetos. Por que, concluía Bolk, não podia ter-se dado o mesmo com o homem? O homem parece-se com um embrião de macaco, tem a mesma cabeça grande e as mesmas proporções dos membros, e conservou portanto a grande oportunidade de aperfeiçoar um único órgão, o cérebro.
Isto concordava não só com o fato, tão misterioso até então, de que o homem, ao contrário de todos os macacos, se apresentava verdadeiramente primitivo sob o ponto de vista anatômico, mas também com as observações dos psicologistas. Toda a pesquisa humana, disse a propósito Konrad Lorenz, é pura curiosidade, é jogo. Todos os conhecimentos científico-naturais a que o homem deve o seu papel predominante na Terra resultaram de atividades que não tinham outro objetivo que a diversão. Quando Benjamin Franklin fez saltar faíscas do cordão de seu papagaio, estava pensando tão pouco no pára-raios como Hertz no telégrafo sem fio quando pesquisava as ondas eletomagnéticas. Quem tiver notado quanto é comum a obra de toda a vida de um pequisador resultar de sua curiosidade quando menino não mais duvidará da semelhança profunda entre o jogo e o estudo. O pequeno curioso que desapareceu completamente na individualidade do chimpanzé adulto, tornado inteiramente animal, não está oculto no homem autêntico, como diz Nietzsche: ao contrário, ele o domina por completo!
A teoria da fetalização de Ludwig Bolk, completada em seu aspecto psicológico, conquistou imediatamente muitas fortalezas científicas. O grande biologista francês Jean Rostand elogiou-a como espirituosa e profunda: o evolucionista belga Lucien Cuénot renovou-a acentuadamente em 1945, declarando que o homem era o neotenio de um chimpanzé ou gorila, com propriedades físicas infantis e tempo de crescimento retardado, que os chimpanzés e gorilas atuais, ao contrário, tinham abandonado rapidamente esse estádio e se aperfeiçoado como acrobatas.
Mas havia também os cépticos que indicavam a propósito que o homem não se caracterizava apenas por retardamentos na sua evolução, mas também por acelerações, e que os aparentes entraves no desenvolvimento podiam ser considerados antes sinais de domesticação. Segundo esta opinião, o homem se domesticou a si mesmo e, desse modo, conservou certos caracteres infantis e um comportamento infantil receptivo, como diversos animais domésticos.
A ciência aceitou as conclusões de Bolk até certo ponto e aproveitou-as. Mas a maioria dos pesquisadores achou absurdo que a humanidade derivasse imediatamente de embriões de chimpanzés ou gorilas tornados púberes. Os entraves na evolução foram confirmaos pelo menos em parte, mas a criatura que os encarnara, o primata primitivíssimo, o misterioso antepassado comum do antropóide e do homem, esse só foi encontrado por John Talbot Robinson na África do Sul.
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SÓ SEI QUE NADA SEI
Sócrates
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Meio homem, meio macaco: o plesiantropo. Desenhos como este não são mais um produto da fantasia. A ciência conhece as partes constituintes mais importantes dos esqueletos de semi-homens e encontrou numerosos vestígios de seu modo de vida. Tudo isto permite-lhe fazer reconstruções relativamente exatas.
Eis, aqui, como se apresenta a genealogia do semi-homens e, portanto, a história da humanização: algures nos trópicos do mundo antigo – talvez nas savanas africanas, talvez também na região cultural oriental posterior – entraram em cena as primeiras criaturas antropomorfas do tipo de Taungs e Markapansgat, das quais não se pode concluir ainda se eram macacos ou já eram homens. Viviam provavelmente em hordas, em regiões descampadas, arrancavam roedores dos buracos da terra, apanhavam também lagartos e caranguejos e aprendiam pouco a pouco a usar o fogo. Não sabemos se eles já o sabiam acender ou se tinham de esperar sempre que ocorresse um incêndio na estepe. Deles resultaram, no decorrer de algumas centenas de milhares de anos, os semi-homens de Sterkfontein e Kromdraai e provavelmente outras espécies ainda não descobertas que proviam do mesmo modo à sua subsistência, mas já possuíam armas melhores. Essas criaturas organizavam batidas a macacos e pequenos antílopes, progredindo até se tornarem senhores resolutos de seu meio e mantendo-se provavelmente até muito tarde no plistoceno em seu reservado paradisíaco da África do Sul, que lhes permitira as possibilidades de subsistência. Uma dessas espécies é o antepassado do telantropo e, muito provavelmente, o antepassado presuntivo da espécie humana. Enquanto o corredor das savanas e o quebra-nozes se extinguiam pouco a pouco, seus descendentes conquistavam o mundo.
Contudo, com botas de sete léguas o homem, então, se afastou do resto dos primatas; ele utiliza as leis da Natureza, escreve e lê livros, inventa aparelhos com que pode entender-se de continente a continente, armas que podem despovoar regiões inteiras e aceleradores de partículas que recriam o início do Universo. Sobrepõe-se à vida e à morte: de seus laboratórios surgem novas espécies de animais e plantas, em suas fábricas de produtos químicos produzem-se remédios contra as doenças mais mortíferas, gera descentes por meio de fecundação artificial, e está em condições de gerar clones idênticos de si mesmo. Seu cérebro abrange os tempos, seu sentimento exulta com uma paisagem, uma poesia, uma melodia. Ele tornou-se o seu próprio legislador e dispensa uma justiça diferente da que dispensava a Natureza. A primitiva ânsia inconsciente do primata de sair da pele do animal, realizou-se no homem… pelo menos em grande parte.
Mas por todo o globo, o homem civilizado, que progrediu tão maravilhosa e perigosamente, encontra ainda testemunhos vivos de sua evolução, primitivos silvícolas, caçadores nômades, pigmeus cavernícolas. São homens como ele, biologicamente iguais a ele, mas mentalmente separados dele por vinte mil anos de civilização. Sua existência revela-nos como se processaram as últimas etapas da evolução humana; é o diagrama pré-histórico mais impresionante e mais convincente que conhecemos. Se não existissem mais esses selvagens, como designamos com certo desprezo e arrogância esses restos humanos de tempos primitivos, pouco poderíamos responder sobre a grande questão da nossa origem.
O fato de que existem ainda raças primitivas deve-se menos ao humanitarismo do homem civilizado do que a circunstâncias favoráveis. O homem civilizado tem feito tudo para lhes dar o mesmo destino que tiveram inumeráveis espécies de animais exterminadas. Num período geológico relativamente curto ele – e esta é a sombra que lança o seu vôo a grande altura – matou mais indivíduos da sua espécie do que qualquer outra criatura antes e durante a existência dele. Por vezes refletia e escrevia doutrinas e filosofias impressionantes que deveriam pôr um fim à eterna reprodução do ato de Caim. Mas a era do humanitarismo, do amor ao próximo, que deveria coroar a evolução do homem, está tão distante hoje como nos tempos da Batalha de Krapina.
Só quando conseguirmos atingir esta última etapa humanitária poderemos dizer com verdade que superamos o australopiteco armado de varapau que existe em nós. É nisto e só nisto – não no terreno científico, biológico, técnico, econômico ou político – que estará a decisão sobre o futuro da raça humana.
Fontepesquisada: Herbet, Wendt, À PROCURA DE ADÃO, São Paulo, 1953