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TRÊS ESPÉCIES DE DÉSPOTA
(…) não há necessidade alguma de separar o monarca da plebe: toda autoridade é igualmente má. Há três espécies de déspota. Há o que tiraniza o corpo. Há o que tiraniza a alma. Há o que tiraniza o corpo e a alma. O primeiro chama-se Príncipe. O segundo chama-se Papa. O terceiro chama-se Povo.
Oscar Wilde
POSTED BY SELETINOF AT 11:47 PM
MATÉRIA E ANTEMATÉRIA – UMA CONCEPÇÃO DO UNIVERSO
Rogério Fonteles Castro
Graduado em Física pela Universidade Federal do Ceará
QUEM SOMOS NÓS – NA VISÃO DOS FÍSICOS E NÃO DOS MISTICOS
Rogério Fonteles Castro
Graduado em Física pela Universidade Federal do Ceará
Nesta postagem, além de lhes apresentar uma pequena amostra da palestra sobre o filme Quem Somos Nós, presidida por duas personalidades importantes do cenário científico cearense atual, elaboramos uma síntese sobre os fundamentos da mecânica quântica – a partir de dois textos pesquisados nos livros Física Moderna, autor Walter R. Fuchs, e O Pensamento Matemático, autor Oscar Becker-, e estabelecemos um parecer bastante esclarecedor sobre este afamado filme, tomando por base, claro, a posição da ortodoxia da mecânica quântica.
O modelo atômico de Bohr, estrutura mecânica construída sobre fundamentos “mais ou menos clássicos”, não pôde explicar a razão da existência de certas órbitas permitidas (ou orbitais) em torno do núcleo atômico. A teoria da mecânica ondulatória de Erwin Schrödinger foi a primeira sugestão radical duma solução para as dificuldades fundamentais do modelo de Bohr. Entretanto, esse físico austríaco defendia que todas as coisas poderiam, na “realidade”, ser representadas por ondas multidimensionais. Ainda que as equações diferenciais de Schrödinger para a descrição dos fenômenos subatômicos fossem muito aceitos pelos físicos, a sua interpretação geral não o era.
Recordando a filosofia que se encontra por trás do dualismo onda-partícula, temos aí que a interpretação dos resultados depende do tipo de experiência que é realizada. Essa linha produtiva de raciocínio foi iniciada por Niels Bohr. Foi ele o primeiro a reconhecer que era impossível sujeitar à observação simultânea os dois aspectos distintos do elétron, ou seja, o seu caráter de onda e o de partícula. Esse é um princípio limitador que governa as condições experimentais e limita a informação que pode ser obtida das experiências.
Essa idéia está expressa compreenssívelmente no Princípio de Complementaridade de Bohr. Em toda a filosofia da ciência, esse conceito elaborado de forma teórica é, seguramente, a contribuição mais importante depois da publicação, por Immanuel Kant, da Crítica da Razão Pura em 1781 (e a segunda edição, revista, de 1787). Esse trabalho do filósofo de Könisberg é a revisão de maior autoridade da Física do seu tempo – a Física newtoniana. Quando essa teoria clássica começou a falhar na explicação dos fenômenos subatômicos, o primeiro passo corajoso no sentido de introdução de conceitos novos foi dado por Niels Bohr.
Além dele, o jovem físico alemão Werner Heisenberg conseguia, na segunda metade da década de vinte, obter uma compreensão mais clara da nova situação da física. Adotou então uma atitude filosófica baseada no extremo empiricismo, que recusava aceitar quaisquer das imagens ou modelos da física moderna. Por exemplo, no modelo atômico de Bohr, os físicos se referiam à “posição” e ao “período de revolução” de um dos elétrons do átomo. Essas noções formavam uma herança da mecânica newtoniana e, em relação aos elétrons atômicos, eram classificadas como “não-observáveis”. Heisenberg considerou essas “noções imaginárias” como sendo algo sem sentido, desprovido de qualquer fundamento. Ele sugeriu o desenvolvimento duma mecânica quântica teórica, análoga à mecânica clássica, em que apareceriam apenas relações entre quantidades observáveis (http://petroleo1961.spaces.live.com/blog/cns!7C400FA4789CE339!264.entry). A realização desse programa formava o que se conhece como “Mecânica das Matrizes”, e foi aperfeiçoado com a colaboração do professor de Heisenberg, Max Born, e de Pascual Jordan.
Bohr explicava a transição entre dois quaisquer estado energéticos do átomo por meio dum salto do elétron duma órbita representativa dum estado à outra. Associado a esses saltos quânticos, sempre aparecia um fóton que era radiado ou absorvido, de acordo com o sentido do salto eletrônico.
Heisenberg se opunha a essa imagem transitória com seu mecanismo desconhecido. Ele reconhecia que, na observação esperimental dos átomos, somente os níveis energéticos discretos “estacionários” podiam ser estabelecidos. Não determinamos experimentalmente os detalhes do que ocorre quando um elétron atômico muda dum estado a outro, como também não decidimos se o elétron descreve uma órbita no sentido clássico ou se comporta como uma onda estacionária ao redor do núcleo. Qualquer modelo explanatório que possamos construir só pode ter a finalidade duma melhor compreensão, representando apenas uma especulação. Contudo, é óbvio que, não sendo observadas certas circunstâncias, esses modelos podem mesmo levar à confusão. Por outro lado, uma certa regularidade na forma das transições entre os níveis energéticos discretos pode ser estabelecida experimentalmente, na qual o estado fundamental do átomo ocupa um papel prioritário.
Enfim, com respeito ao acabamento do desenvolvimento da mecânica das matrizes, podemos citar as próprias palavras de Max Born:
“O período de tentativas chegou subitamente ao fim, com o trabalho de Heisenberg, que era meu assistente naquele tempo. Ele cortou o nó górdio com um princípio filosófico novo e substituiu o raciocínio por uma regra matemática. Em essência, o princípio significava que noções e conceitos que não correspondessem a nenhum fato fisicamente observável não poderiam ser usados em qualquer descrição teórica. Heisenberg rejeitava o conceito de órbitas eletrônicas com raios definidos e períodos de revolução porque esses não eram observáveis, e recomendava que a teoria fosse construída por meio de matrizes”.
Mas o ponto decisivo nesta construção era o dualismo corpúsculo-onda e a questão do influxo do “observador” sobre os processos físicos “reais” e “objetivos”. É sabido que o lugar e o impulso de uma partícula não podem ser simultaneamente, isto é, pela mesma experiência, medidos com exatidão. Quando se consegue medir exatamente uma das duas grandezas “complementares” (lugar e impulso, tempo e energia), a outra desaparece; no caso extremo da máxima exatidão na medição da primeira grandeza, a segunda não pode ser absolutamente medida. Tal é o conteúdo essencial das “relações de indeterminação” de Heisenberg.
Niels Bohr elaborou em 1927, depois de longas discussões, o conceito fundamental de complementaridade, que há pouco empregamos. Introduziu duas concepções inteiramente distintas para os processos quânticos, que são complementares no sentido que só podem existir lado a lado sem contradição quando seu alcance é limitado de tal modo que nunca são utilizadas ao mesmo tempo. Segundo a experiência, a “partícula elementar” se mostra ora como corpúsculo, ora como onda.
Porém, Heisenberg encara a questão de outro modo, o que é de particular importância para o nosso problema sobre o papel da matemática. Como vimos, acima, parte da hipótese que só se verificam na natureza, ou só podem ser processados experimentalmente, processos que se deixam representar como vetores (ou mistura de vetores) (os observáveis) no espaço de Hilbert de muitas dimensões, numericamente infinitas. Modelo para Heisenberg era a teoria da relatividade restrita que igualmente representa a realidade física por vetores em meio ao “mundo” quadridimensional. Mas um vetor num espaço de Hilbert de dimensão infinita (ou na matriz hermitiana correspondente) não é intuitivo; não o é tão pouco a equivalente representação por uma onda no espaço de configuração segundo Schödinger; pois o espaço-configuração tem 3n dimensões para n partículas. Trata-se de uma simples analogia para uma onda intuitivamente tridimensional. A tentativa de uma interpretação intuitiva leva-nos novamente às duas imagens complementares (corpúsculo e onda) de Bohr.
Em meio a todas essas complexas tentativas de solução pergunta-se: o que dizer sobre a realidade física dos processos quânticos? N. Bohr fala de “impossibilidade de uma distinção exata entre o comportamento de objetos atômicos e a influência sobre eles exercida pelos instrumentos medidores, que servem para determinar as condições em que os fenômenos se manifestam”.
Segundo Heisenberg, mesmo tendo em vista tal impossibilidade de distinção, pela intervenção de um observador não se introduz qualquer traço subjetivista na descrição da natureza, o que não deixa de ser muito importante do ponto de vista “filosófico”. Segundo ele, o observador tem simplesmente a função de registrar fatos que se verificaram no tempo e no espaço, pouco importando que o “observador” seja um aparelho que funciona automaticamente ou um ser vivo (de modo especial um homem que entende do assunto). O que entretanto é absolutamente necessário é a passagem do possível ao “factual” dentro do processo atual do registro. Este último ponto de Heisenberg se relaciona – o que ele mesmo nota – com a seguinte consideração de Weizsaecker: somente fatos futuros são ainda possíveis, os passados são simples fatos. Não tem sentido perguntar sobre a probabilidade (isto é, sobre a possibilidade quantitativamente determinável) de sua realização, pois já são reais. O que de fato já aconteceu não pode ser objeto de indagação quanto à possibilidde ou probabilidade de sua realização. Assim um fato histórico, como a do registro de um elétron pelo contador de Geiger, não entra numa teoria como a mecânica quântica que se ocupa de possibilidades (probabilidades).
Qualquer sistema quântico separado do mundo exterior só tem um caráter potencial, não “factual”; por isto, segundo Bohr, ele não pode ser descrito por conceitos da física clássica. O estado representado por um vetor de Hilbert (não por uma combinação estatística de vetores), aplicado a um sistema fechado, é segundo Heisenberg “objetivo”, mas não “real”, pois nele não se pode verificar um fato historicamente constatável em nosso mundo macroscópico (tais como a revelação de uma chapa fotográfica, a indicação de um instrumento, e semelhantes aparelhos de que nossas salas de física estão cheias). Portanto a concepção clássica de “objeto-real” deve ser abandonada.
Assim, à luz da “interpretação de Copenhagen” (ou, da ortodoxia da mecânica quântica), da teoria dos quanta, a oposição tradicioanal entre “realismo” e “idealismo” não pode mais ser empregada e as teoria tradicionais do conhecimento fracassam… Os processos que se verificam no tempo e no espaço de nosso ambiente diário são propriamente o real e deles é feita a realidade de nossa vida concreta. “Quando se tenta, diz Heisenberg, penetrar nos pormenores dos processos atômicos que se ocultam atrás desta realidade, os contornos do mundo “objetivo-real” se dissolvem, não nas névoas de uma nova imagem obscura da realidade mas na clareza diáfana de uma matemática, que conecta o possível (e não o “factual”) por meio de suas leis”.
Infelizmente, desde que o famoso Princípio da Incerteza de Heisenberg foi enunciado pela primeira vez em 1927, muito foi escrito sobre esse princípio, tanto por filósofos como por pseudofilósofos, de forma confusa e sem sentido, chegando mesmo a ser tomado por uma “verdade universal”. Quiseram mesmo demonstrar o “livre arbítrio humano”, usando o princípio de incerteza.
De maneira semelhante, os “fundamentos científico-filosóficos”, empregados na elaboração do filme “Quem Somos Nós”, se encontram numa total discrepância com relação aos fundamentos da mecânica quântica; ou seja, o realismo, que está implicito na construção das imagens utilizadas no filme, e que é também uma suposição implicita na física clássica e em toda teoria moderna, não tem valor na mecânica quântica. Ao realismo se associa a idéia de que o comportamento de um objeto é determinado por suas propriedades intrínsecas reais e por propriedades intrínsecas reais do ambiente em que ele se encontra. Para a interpretação de Copenhagen, porém, o mundo é não-realista. Para essa corrente, as propriedades dos corpos são propriedades apenas potenciais, que dependem do experimento realizado, ou seja, da observação que se está fazendo. Assim, tudo que é afirmado nesse filme está errado ou não passa de pura especulação segundo a ortodoxia da mecânica quântica.
Também, agradecendo aos nossos colegas Marcos&Camila, da comunidade Filosofia & Ciência, pela colaboração, publicamos aqui o texto abaixo de Roel Cruz Rizzolo (roel@anatomiafacial.com): nesse artigo temos, novamente, uma crítica científica ao filme “Quem Somos Nós”; entretanto, tal abordagem está mais ligada ao campo da biologia (Artigo publicado originalmente no jornal Folha da Região, Araçatuba, terça-feira, 7 de novembro de 2006).
Um tempo atrás, alguns amigos me recomendaram assistir ao filme “Quem somos nós?”. Afirmaram terem ficado extremamente impressionados com a beleza, mensagem, e com a facilidade com que assuntos complexos sobre neurociência e mecânica quântica eram abordados.
Como sou fã da divulgação científica fiquei curioso, embora a afirmação de um deles que o filme mostrava como a mecânica quântica dava suporte a algumas teorias místicas, me deixou desconfiado. Mas em nome da curiosidade científica fui atrás, do filme e da opinião dos cientistas sobre ele. Pesquisei demoradamente. Visitei sites sérios na área de neurociência e física. Li a opinião de vários pesquisadores e professores.
O resultado? Bem, confesso que raras vezes observei uma unanimidade tão grande sobre um assunto. Na melhor das hipóteses, o filme está cheio de erros.
Mas para a maioria dos cientistas das áreas envolvidas trata-se de uma deliberada tentativa de falsear e distorcer dados científicos para nos convencer sobre as opiniões místico-religiosas defendidas (e comercializadas!) pelos produtores do filme.
Ante a possibilidade de ser lançada uma versão ampliada desse “documentário”, achei que seria importante mostrar estas informações aos leitores.
Para ser objetivo, tentarei listar os erros e distorções que o filme comporta. (…) Entre os erros menos graves podemos citar:
– O filme menciona que nosso corpo contém 90% de água. Errado. O recém-nascido tem aproximadamente 78%, homem adulto 60% e mulher 55%. Há variações individuais (obesos têm menor porcentagem que magros, etc).
O filme menciona que nosso corpo produz 20 aminoácidos. Errado. Produzimos 12. Os 8 restantes são aminoácidos essenciais e devem ser incorporados por meio da dieta.
– A animação que mostra a comunicação entre os neurônios está errada. Os neurônios não se comunicam por meio de correntes elétricas e sim através de neurotransmissores químicos liberados nas sinapses. Essa diferença é fundamental. É do equilíbrio desses neurotransmissores que depende o funcionamento cerebral e nosso comportamento.
A lista de “pequenos” erros é bem maior. Porém, vamos agora aos disparates.
– O filme menciona que os primeiros nativos americanos não seriam capazes de ver as caravelas de Colombo porque a caravela estaria fora do “paradigma” cerebral. Isto é uma besteira. E é um engodo já que distorce conceitos cuidadosamente definidos pela neurociência como sensação e percepção para defender o indefensável. Os nativos já tinham canoas. Acreditar que colocar uma vela sobre a canoa a tornaria invisível é de dar risada. A informação é inventada. Não consta nos diários de Colombo e informações detalhadas sobre essas tribos (Arawaks ou Aruaques) desapareceram até da tradição oral.
– O filme quer nos fazer acreditar por meio de um dos seus “cientistas”, Masaru Emoto, que a formação de cristais de gelo é influenciada por palavras específicas escritas em papel e fixadas no recipiente. Por exemplo, ao escrever “amor” formam-se cristais com belas formas. Ao escrever “eu quero matar você” a delicada estrutura cristalina se desarranja.
Para os cientistas, um absurdo total. Argumentam que Emoto conhecia previamente as palavras e procurou intencionalmente os cristais apropriados entre os milhões que são formados.
O experimento nunca pôde ser repetido em nenhum laboratório do mundo. O Ph.D. de Emoto foi concedido por uma universidade não credenciada nos Estados Unidos. James Randi, aquele que desafiou nosso homem do “ra”, Thomaz Green Morton, a reproduzir frente às câmeras seus fenômenos paranormais, ofereceu um milhão de dólares para que Emoto repetisse o experimento sob controle científico. Emoto não apareceu até agora (nem Morton).
Tenho que truncar a lista por aqui. Não posso falar do “efeito Maharishi“, onde através da meditação transcendental coletiva os índices de violência teriam diminuído em Washington.
Apenas comento que o autor desse “experimento”, John Hagelin (que aparece no filme), foi honrado pela comunidade científica pelo prêmio Ig-Nobel em 1994. Assim, seu estudo está ao nível dos prêmios concedidos este ano, como por exemplo, “Porque pica-paus não têm enxaqueca?”.
Finalmente, chama a atenção que boa parte dessas informações “científicas” são comentadas por uma senhora loira com acento estranho. Ela parece possuir conhecimentos infindáveis sobre mecânica quântica e neurociência. Ao final do “documentário” descobrimos que essa “cientista” é, na realidade, Ramtha, o espírito de um guerreiro de Atlântida morto há 35.000 anos, “canalizado” pela dona de casa americana J Z Knight, que na realidade nasceu Judith Darlene Hampton em uma cidadezinha de Novo México, que hoje abriu uma lucrativa escola mediúnica (Ramtha School of Enlightenment), na qual boa parte dos “cientistas” consultados neste filme trabalha. Coincidência, não?
Enfim, leitor, não perca seu tempo. Gastar 90 minutos ouvindo Ramtha e seus amigos irá deixar você com muito tédio, muito mal informado e, pelo menos, R$ 5 mais pobre.
Roelf Cruz Rizzolo é professor de Anatomia Humana da Unesp, câmpus de Araçatuba, e escreve neste espaço quinzenalmente.