Arquivo mensal: maio 2008

VERDADEIRAMENTE IMORAL É TER DESISTIDO DE SI MESMA!

  

 

Até cortar os defeitos pode ser perigoso – nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro…há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo…. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. …Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões – cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força.

Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você – respeite sobretudo o que imagina que é ruim em você – não copie uma pessoa ideal, copie você mesma – é esse seu único meio de viver…Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma.

 

Clarisse Lispector

 

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CIDADE REAL – CIDADE IMAGINÁRIA

          

 

NOGUEIRA M. A. L.: A cidade imaginada ou o imaginário da cidade. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, V (1): 115-123 mar.-jun. 1998.

O artigo trata da temática da cidade real-cidade imaginária. Argumenta que, ao refletirmos sobre a cidade, refletimos, também, sobre nós mesmos, com todos os nossos sonhos, frustrações, ansiedades e esperanças. A discussão parte de uma ciência reencantada, que aproxima as questões do cotidiano, da memória, do símbolo e do mito.

PALAVRAS-CHAVE: cidade, imaginário, símbolo, mito.

 

NOGUEIRA M. A.L.: The city imagined, or the citys imaginary. História, ciências, Saúde — Manguinhos, V (1): 115-123 Mar.-Jun. 1998.

Exploring the topic actual city/imagined city, the article argues that when we reflect on the question of city, we are also reflecting upon ourselves — including all our dreams, frustrations, anxieties, and hopes. This discussion is made possible by a science that interrelates the issues of daily life, of memory, of symbol and of myth.

KEYWORDS: city, imagination, imaginary, symbol, myth.

 

É uma cidade igual a um sonho: tudo o que pode ser imaginado pode ser sonhado, mas mesmo o mais inesperado dos sonhos é um quebra-cabeça que esconde um desejo, ou então o seu oposto, um medo. As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas e que todas as coisas escondam uma outra coisa.

Ítalo Calvino 

    

A cidade de que pretendo falar é um símbolo. É a cidade ambígua, desenhada pelas marcas da memória individual/coletiva. É a cidade do nosso desejo, espelho de nossas paixões, experiências e expectativas. Nesse sentido, está presente em nossa memória sob a forma de marcas profundas. O conceito de memória que adoto está calcado na psicanálise e tem relação direta com a fantasia (Bezerra de Menezes, 1991). É inventada e reinventada, construída e reconstruída a partir do laço estabelecido com o acontecimento, que muda constantemente, arrastando nessa mudança o seu significado.

Na memória superpõem-se presente, passado e futuro. Nela flui não mais o tempo linear encontrado em Freud, mas um tempo a-causal, sincronístico, junguiano, o Kairos, tempo próprio do mito, tão bem colocado por Calvino (1990, p. 29): "Você viaja para reencontrar o seu futuro?", ou mesmo, na referência a "saudades do futuro" dos físicos modernos (Capra, 1983). Pois a memória não tem margens nem limites, é solta, atrela-se apenas ao desejo. Se fixarmos suas margens com palavras, elas cancelam-se.

Para lidar com a questão do espaço, recorro ao conceito de memória topográfica do prof. W. Bollie da Universidade de São Paulo (USP):1 topografia móvel, que se reconstrói no entre-cruzamento entre a nossa emoção e as ruas da cidade. Tenho em mente, portanto, um espaço qualitativo (o topos, espaço próprio do mito). 

Convém ressaltar que a memória é contraditória, não-racional, e envolve um universo diversificado de marcas, como mostra Montenegro (1992). Possuindo lógica desconhecida, distingue-se em dois tipos: a voluntária e a involuntária. Na primeira, os fatos vêm à tona de acordo com a vontade do indivíduo, ao passo que, na segunda, não se sabe qual estímulo desencadeia o rememorar: uma relação invisível envolve os dois tipos de memória, configurando uma dimensão não apreendida, que só reforça sua imersão no universo simbólico, cujos significados nos escapam a todo instante.

Fio condutor desse trabalho, a memória é assim a responsável pela construção da cidade imaginada da qual trato. Não me importa saber se é ou não real, e considero descabido qualquer esforço no sentido de estabelecer nítida distinção entre a cidade real e a imaginada, visto que a realidade objetiva daquela nem sempre coincide com o que significa, subjetivamente, para o indivíduo.

            

Na cidade, constrói-se uma rede infinita de relações e representações, o que torna pertinente o conceito de cultura de Muniz Sodré (1988). Tal conceito se adequa a um estudo na perspectiva da antropologia do imaginário, entendendo-se este como "vasto campo organizado de forças antagônicas" (Durand, 1988). Em seu âmbito, a memória entrecruza os pares de opostos indivíduo/sociedade, significante/significado, sujeito/objeto, objetividade/subjetividade, combinando-os segundo sua própria lógica e reordenando-os nas malhas do tempo sincronístico, mítico, arquetípico e do espaço qualitativo.

O estudo da cidade imaginada é importante porque permite ampliar nossa compreensão do fenômeno urbano a partir da narrativa da memória. O narrador — "aquele que descreve com a maior exatidão o extraordinário e o miraculoso" (Benjamin, 1985, p. 221) — informa-nos, em última instância, qual "o processo reativo que a realidade provoca no sujeito" (Montenegro, op. cit., pp. 19-20). Tais reações interessam-nos na medida em que representam "o que está submerso no desejo e na vontade individual e coletiva".

O que subjaz à cidade são nossos desejos, que logo se tornam lembranças, mas "a cidade não conta o seu passado, ela o contém" (Calvino, 1990, p. 14). Ao rememorar, o narrador revê não as coisas em si, mas significados das coisas. Ele se revisita. Às imagens que vêm à tona corresponde um olhar a percorrer ruas, becos, calçadas, pessoas, brigas, amores, família, patrão, trabalho… A cidade é um livro-texto que se deixa desnudar pelo narrador. Este, ao mesmo tempo que olha, conta-lhe segredos, repete discursos.

            

 
É impossível apreender em sua totalidade esse universo infinito de símbolos que envolve a cidade, pois cada um de nós estabelece relações próprias com o lugar, descreve com ele uma trajetória sempre singular. O que se pode compreender são representações individuais e coletivas plasmadas em conteúdos simbólicos gerais. Afinal de contas, "a cidade é redundante: repete-se para fixar alguma imagem na mente …, a memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir" (idem, ibidem, p. 23).

Decifrar símbolos é tarefa incerta, pois a todo instante são colecionados novos sentidos. Sempre existe algo a descobrir: "Agora, desse passado real ou hipotético, ele está excluído; não pode parar; deve prosseguir até uma outra cidade em que outro passado aguarda por ele, ou algo que talvez fosse um possível futuro e que agora é o presente de outra pessoa" (idem, ibidem, p. 29).

A cidade carrega consigo algo de grandioso, porque é aquilo que ela de fato se tornou que proporciona a magia atrativa da recordação, assim como a possibilidade de imprimir as marcas do que não-é na alma de seus habitantes. Em todas as épocas, vão imaginar o que seria dela e deles mesmos caso não tivesse se tornado a cidade real. Cada um constrói, então, sua cidade imaginada, sua cidade ideal, e dentro dela as relações dão conta de todos os desejos. Podemos supor que há as que dão forma aos desejos, e outras, que são engolidas por eles. Os desejos são os dínamos da cidade, viabilizando a transformação das lembranças no âmago de novas relações com os fatos.

Ao descrever a cidade, o narrador percorre-a inteira com o pensamento, não se perde, e tem a sensação exata do vazio que envolve o espaço percorrido, vazio inexprimível por palavras. Daí a necessidade de metáforas para aludir ao que só o coração revisita. Das relações, das pessoas, o que se obtém é o que o olhar do narrador capta. Ele propicia os encontros e desencontros com pessoas e acontecimentos de um tempo dado. É desse modo que Baudelaire (1989) nos fala através da figura tão bem qualificada por Benjamin (1985): o flâneur. Este estabelece com a cidade outro nível de relação, uma cumplicidade que decorre do ritmo próprio com que a percorre, e dos olhos poéticos com que perscruta a alma de seus habitantes.

 
          

 

A cidade contém os segredos deles. Por isso, não convém confundi-la com a descrição de quem a narra: ela não se deixa apreender por um só discurso. Os deuses e mitos que a guardam tornam-na ambigua e milagrosa, e muito maior que a construção de um modelo. A cidade extrapola a ânsia de ser verossímil.

As relações intricadas que agasalha são um convite permanente ao mergulho. Não se pode compreender o homem da cidade fora dessa rede que o engole e embala, que se inventa na mente a partir de detalhes, caminhos de cidades já vistas e de outras, nunca visitadas.

Todas as imagens construídas estão presentes na própria história de vida do narrador. Suas dúvidas, respostas, alegrias, seus anseios e seu futuro é que possibilitam a cidade imaginada. A viagem que faz por ela através da memória transcende espaço e tempo convencionais, e ativa, a um só tempo, indivíduo e multidão, sendo esta a origem de seu transtorno ou, ao contrário, o seu refúgio (Benjamin, 1985).

Visitar a cidade através da memória é visitá-la com paixão para o instante-já; é conservá-la singular da única forma possível, dentro do coração, sem visualizar a ordem subjacente ao resgate. Mas quem ouve/lê a narrativa "retém somente as palavras que deseja (pois) … quem comanda a narração não é a voz: é o ouvido" (Calvino, 1990, p. 123).

            

Para Recket (1989, pp. 11, 13) o imaginário da cidade é "um conjunto de imagens que a significam, ou que ela por sua vez significa". Entre os significados, ressalta o autor o de mãe: "as estruturas mais primitivas — casa, celeiro, pombal, o cercado que as rodeia até o túmulo — eram maternalmente redondas e aconchegantes". Não por acaso a cidade imaginada de Platão era circular. A própria Bíblia designa-a como recinto familiar protegido por cerca. Encontramos novamente o arquétipo do círculo na etimologia indo-européia, onde um conceito abstrato figura a cidade enquanto comunidade de habitantes. A identificação da maternidade, do feminino, com a cidade encontra-se em Calvino (op. cit.). Todas têm nome de mulher. Metaforicamente, a cidade é personificada como mãe-pátria. O psicanalista Carl G. Jung (1981) também a associa ora à mãe, ora à filha. Imagens similares freqüentam os poemas do pernambucano João Cabral de Melo Neto (1968).

Outro conjunto de símbolos leva a perceber a cidade à luz da dicotomia paraíso/inferno. A saudade, a distância da terra trazem à memória o paraíso, enquanto o inferno pode ser apreendido no passado recente. Por exemplo, na Paris onde escreveu Baudelaire (1989), que o oprime e que, pouco a pouco, transfigura a paisagem de "sua" Paris. 

A idealização do passado é tema marcante nas narrativas sobre a cidade. Acrescenta-se a esta a utopia do futuro (cidade celeste) e a do presente, encontrada em Fernando Pessoa (1971), que se vê "com saudades dele/já ao vivê-lo". 

A utopia do passado revela "uma metáfora da perda íntima e irrecuperável sofrida por quem a lamenta, e causada pela mudança que o tempo operou tanto nele como no … tal centro perdido, o qual não era menos um tempo — o da juventude — do que um espaço" (Recket, 1989, pp. 20-1). Lembremos da "topografia móvel" de W. Bollie: esse é o topos mítico, silencioso, poético, subjetivo, o tempo todo reencontrado na narrativa. "Voltar ao passado/sem tempo de manteiga nos dentes", deseja Fernando Pessoa (1971). 

Já a utopia do futuro envolve uma viagem de religação com o centro perdido. É o caráter sagrado da cidade que se tenta recuperar, literal e fisicamente. Quer-se de volta o "umbigo do mundo", o lugar de Deus. 

No presente, a cidade situa-se num continuum espaço-tempo em eterno movimento, um "sonho feliz de cidade … (onde) Narciso acha feio o que não é espelho" (Caetano Veloso, Sampa). 

Projetaram-se utopias desde sempre: da cidade de Platão, passando pelas de Gulliver, até a Brasília de Niemeyer e aquela imaginada por Philip K. Dick em Blade Runner. É na utopia do futuro que se apreende o mito da decadência e destruição, cujo ápice seria o fim da civilização ocidental e o começo de um novo tempo, uma nova civilização, através do restabelecimento do laço com o sagrado.

    

Para Calvino (1990, p. 48), a cidade é uma metáfora da linguagem, pois "os símbolos formam uma língua, mas não aquela que você imagina conhecer …, não existe linguagem sem engano". Ora, se a cidade é uma linguagem, e se quase todas as cidades ideais são metáforas de mulheres, podemos pensar que as mulheres são linguagens, "as mulheres particulares, que a preenchem de figura e de forma, como textos ou signos: cada uma com a sua mensagem única e intraduzível, o seu discurso individual, o seu secreto significado". Podemos ir além nessas conjecturas, dizendo que a cidade é ainda mais insondável e imprevisível que a linguagem e a mulher, visto que é anterior tanto "à diferenciação dos signos como à dos sexos" (Recket, 1989, p. 27).

O imaginário da cidade remete-nos à "nostalgia do paraíso", de que M. Eliade (1964) nos fala. Remete-nos à busca incessante do divino, atualizando o símbolo que "se revela como a melhor forma de se comunicar com os mistérios", já que a palavra, em sua linearidade, não dá acesso a eles (Lucas, M. Clara de A., 1989, p. 79). 

O paraíso é inatingível, é o centro, o ponto de partida do mundo. E o centro é uma construção arquetípica. Seu simbolismo reúne noções que vão desde a união entre céu e terra, o espaço de criação do mundo, até a fonte de vida. Portanto, quando repetimos um gesto arquetípico, "vivemos um presente mítico, situado num tempo sagrado anti-histórico" (idem, p. 95). Lembremos do tempo junguiano associado à memória: o narrador revive um gesto arquetípico ao revisitar suas lembranças, e este momento é presente, eterno. Na realidade, o narrador vivencia um tempo mágico-religioso através da utopia da cidade. 

Dessa forma, o presente torna-se o instante em que o discurso é pronunciado, e o ouvinte/leitor se transporta, também, para a cidade imaginada, viajando por esse presente fora do tempo cronológico. Tal discurso/narrativa envolve uma outra lógica, e é fundamentalmente simbólico, porquanto estrutura um conjunto de arquétipos, manifesta certo processo de aquisição de conhecimento.

A cidade imaginada "não seria uma encarnação do desejo do homem, mas ela própria … seria o desejo" (idem, ibidem, p. 102). Isso gera imaginários de várias ordens, e eles apenas se deixam tocar pela emoção que corrompe a narrativa. 

Nessa linha, o que o narrador nos dá é uma cidade de origens e atributos míticos, consubstanciada na imagem da mãe, objeto de desejo e de satisfação de desejo. A cidade está fadada à destruição, pela exacerbação do princípio feminino que consegue sobrepor o instinto e a sensualidade à razão, o excesso à medida, o ócio ao trabalho. Essa ordem, tida como desordem em nossa civilização, permite o nascimento de uma cidade nova, voltada para o sagrado, repetindo o gesto arquetípico da criação do mundo. 

Mas não nos esqueçamos de que "a imagem é um modelo da realidade … o que é imaginável é também possível" (Wittgenstein, 1963, pp. 16 e 19). Portanto, a utopia que envolve a cidade percorre um círculo incessante que supõe sonho e realidade. Corresponde a um imaginário singular próprio da narrativa, que se alimenta das visões do narrador e as alimenta ao mesmo tempo. A cidade ultrapassa a dicotomia natureza-cultura e se nos apresenta como "natureza naturante, que … se liga não à paisagem arquitetônica, mas a um dinamismo de forças" que reflete "a presença dos conflitos humanos" (Mendes, 1989, pp. 306-7). 

Os versos de Fernando Pessoa (1971) deixam transparecer essa complexidade de relações e conflitos: "Recluso/Num desejo de não ser recluso,/Escuto ansiosamente os ruídos da rua." Tal vivência ambivalente da cidade lá fora/cá dentro corresponde ao paradoxo inerente à relação eu/cidade. É necessário o entrecruzamento dos elementos opostos para que seja superado, no decurso da busca incessante do sentido da existência

O paradoxo implica a idéia de uma cidade inatingível, contraponto necessário à cidade imaginada. É na verdade seu impulso criador: "a cidade imagina-se e alimenta-se do real, realizando e construindo imaginário" (Fernandes, e Dias, 1989, p. 358). 

O imaginário liberta-se. A cidade passa a ser reconhecida por sua imagem, pelos sentidos e desejos que insufla. Lembro de Brasília, a cidade funcionalizada que funcionalizou o homem dentro dela: "as cidades-satélite: planejadas segundo o imaginário da função (da sua função) não têm lugar para o homem fora dessa função" (Pimenta, 1989, p. 415). 

A concepção estática de cidade é superada no instante em que seu imaginário se liberta e poematiza. Agora, ela é cenário e personagem de vivências e situações, é paisagem e abrigo. Passa a jogar o esconde-esconde, mostra-se labirinto a ser percorrido pelo homem-minotauro. O desejo do narrador/homem/minotauro é capturar a cidade, apreendê-la, descrevê-la. Mas, repetimos, a cidade não se reduz ao discurso. Não há uma idéia verdadeira de cidade, pois toda imagem urbana está carregada de emoções e visões de mundo. Isso a torna inevitavelmente plural. 

Nessa perspectiva, a tarefa do leitor/ouvinte não é tentar descobrir a cidade, e sim, compreendê-la como o narrador compreende, pois, afinal, "o catálogo de formas é interminável: enquanto cada forma não encontra a sua cidade, novas cidades continuarão a surgir" (Calvino, 1990, p. 126). 

O trajeto que percorremos juntos, leitor-ouvinte/narrador, insere-se num universo simbólico onde revelar a cidade é vê-la pelo avesso. Tal estudo nos encaminha para um repertório infinito de imagens onde "o irreal ou o sobre-real se desvendam e assumem estruturas explícitas possíveis de experimentação e de conceituação" (Durand, 1989b, p. 51). 

Em última instância, podemos afirmar que o estudo da cidade-símbolo/cidade-mito é o estudo da metáfora da profundidade. "As cidades … vêm captar e por assim dizer identificar na memória do grupo, a pulsão dos arquétipos. A cidade concreta vem modelar o desejo da cidade ideal, porque uma utopia jamais está isenta do seu nível sócio-histórico" (idem, ibidem, p. 55).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Baudelaire, C. 1989 Le spleen de Paris. Paris.         

Bezerra de Menezes, A. 199l ‘Memória e ficção’ Revista Resgate, Campinas, n° 3.         

Benjamin, W. 1985 Magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense.         

Cabral de Melo Neto, J. 1968 Poesias completas. Rio de Janeiro, Sabiá.         

Calvino, I. 1990 As cidades invisíveis. São Paulo, Companhia das Letras.

Capra, F. 1983 O tao da física: um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental. São Paulo, Cultrix.         

Darnton, R. 1986 O grande massacre de gatos – e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro, Graal. Biblioteca de História, vol. 13.         

De Coulanges, F. s. d. A cidade antiga. Rio de Janeiro, Ediouro. Col. Universidade de Bolso.         

Durand, G. 1989a As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa, Editorial Presença. Col. Métodos, n° 3.         

Durand, G. jan.-jun. 1989b ‘A renovação do encantamento’. Revista da Faculdade de Educação. São Paulo.         

Eliade, M. 1964 Traté d’histoire de religions. Paris, Payot.

Fernandes, J. Manuel e Dias, M. Graça. 1989 ‘Imaginário à solta em Lisboa’. Em O imaginário da cidade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Acarte, p. 358.         

Ferrara, D’Allessio mar.-abri.-mai. 1990 ‘As máscaras da cidade in Dossiê … Cidades’. Revista USP. São Paulo.         

Holeton, J. 1993 A cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia. São Paulo, Companhia das Letras.         

Jung, Carl G. 198l Symbols of transformation. Londres, Routledge and Kegan Paul. Complete Works, V.Kothe,         

Flávio R. (org.) 1985 Walter Benjamin. São Paulo, Ática. Col. Grandes Cientistas Sociais.

Lucas, M. Clara de A. 1989 ‘A cidade celeste na hagiografia medieval portuguesa’. Em O imaginário da cidade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Acarte, p. 79.
 

Fontepesquisada:(http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-59701998000100006&script=sci_arttext)
         

POSTED BY SELETINOF  11:01 AM

CÉU ESTRELADO E LEI MORAL!!!

   


Duas coisas enchem a Alma de admiração e reverência tanto maiores  quanto mais e mais  intensamente a reflexão se concentrar nelas: o céu estrelado acima de mim; e a lei moral dentro de mim.
 
Immanuel Kant

 

POSTED BY SELETINOF 1:39 PM

O CÓDIGO CÓSMICO

           


Kant foi o primeiro filósofo que estabeleceu os limites, os objetivos e o valor das ciências, declarando que a ciência visa somente aos fenômenos, isto é, investiga o campo do sensível, não ultrapassando o campo da experiência.

De fato, quando verificamos a forma dos corpos, sua composição, suas propriedades, formulamos juízos que exprimem fatos ou relações entre fatos. Portanto, são juízos de uma existência ou realidade. Ao passo que, outros juízos podemos formular sobre o valor das coisas e não o que são elas, sendo estes, juízos de valor, os quais ultrapassam o campo do sensível e da experiência. Desse modo, podemos concluir que os juízos de realidade são científicos e os juízos de valor são filosóficos.

Cada ciência tem seu objeto. E o objeto de cada ciência é uma fração da realidade total. Não poderão, pois, as ciências, cujos objetos não são mais do que partes de um grande todo, fornecer ao homem uma visão do conjunto universal.

As ciências, portanto, não têm caráter universal, sua causa material é limitada, não possuem também profundidade, pois, as ciências se restringem à determinação das leis do fenômenos. A física, por exemplo, cuida das leis da mecânica, da ótica, da acústica, etc.,mas não se preocupa com a composição dos corpos, pois, é o objeto de outra ciência, a Química.

Disso podemos concluir que as ciências se limitam ao mundo dos fenômenos, ao mundo sensível da experiência e fundamentam-se sobre postulados, princípios aceitos sem discussão. Cuidam das causas imediatas, sem ultrapassarem o mundo do sensível.

Todavia, o desejo de saber é inato no homem e não tem limites; não podemos contentar-nos apenas com as causas imediatas das coisas. Existem várias perguntas, que transcendem a experiência e caminham pelo mundo dos valores das coisas, às quais as ciências não podem dar respostas. Cabem, pois, tais respostas a um ramo do saber de caráter universal, que tenha por objetos as causas supremas e gerais, que critique os postulados de todas as ciências particulares. Esse ramo é a filosofia.

A filosofia, então, visa, pela razão, ao que está além da experiência. Portanto, sendo a filosofia essencialmente metafísica, isto é, procurando ultrapassar o mundo físico ou sensível, deve ela servir-se da razão. Mas para atingir seus fins, deve ela servir-se somente da razão natural, distinguindo-se neste particular da teológica, que se serve da razão revelada.

Mas o que é o Universo? É um filme cósmico a três dimensões no qual todos somos atores involuntários? É uma anedota cósmica, um computador gigante, uma obra de arte de um Ser Supremo, ou apenas uma experiência? O problema de tentar compreender o Universo é o não termos nada com que o possamos comparar… As respostas que posssuem maior credibilidade se baseiam na utilização do método científico aliado à linguagem matemática; ou seja, a ciência nos propicia  resultados mais satisfatórios do que a filosofia. Não obstante, abaixo, temos uma análise científico-filosófica a respeito do Universo e sobre a possível linguagem em que este se deixa representar.  

Não sabemos o que é o Universo, ou se ele tem alguma finalidade, mas, como muitos físicos (os quais se utilizam da ciência em seus estudos) temos de encontrar um modo de pensar sobre ele. Einstein acreditava ser errado projetar as nossas necessidades humanas sobre o Universo, porque este é indiferente a elas. Steven Weinberg concorda: “(…) quanto mais sabemos sobre o Universo, mais se torna evidente que ele não tem finalidade nem sentido”. Como a rosa de Gertrude Stein, o Universo é o que é. Mas afinal o que é? A pergunta não se desvanecerá.

Pensamos que a mensagem está escrita num código, um CÓDIGO CÓSMICO, e a tarefa é tentar decifrar esse código. A idéia de que o Universo é uma mensagem é mutio antiga e remonta à Grécia, mas a sua versão moderna foi elaborada pelo empirista inglês Francis Bacon, que afirmou existirem duas relações. A primeira é-nos dada através das escrituras e da tradição e conduziu o nosso pensamento durante séculos. A segunda provém do próprio Universo e só agora começamos a ler esse livro. As frases deste livro são as leis físicas, as invariâncias postuladas e confirmadas pela nossa experiência. Se há pessoas que afirmam terem-se convertido por uma leitura das Escrituras, nós diríamos que o livro da Natureza também tem seus convertidos. Podem ser menos evangélicos do que os convertidos pelas Escrituras, mas partilham uma convicção profunda de que existe ordem no Universo e que essa ordem pode ser conhecida.

Muitos cientistas têm escrito sobre a sua primeira experiência de contato com o código cósmico, isto é, a idéia de ordem para lá da experiência imediata. Esta experiência surge muitas vezes nos primeiros anos da adolescência, quando se dá a integração da vida emocional e cognitiva do ser huamano. Einstein disse que a sua conversão, nessa idade, de uma perspectiva religiosa para uma perspectiva científica alterou completamente a sua vida. Newton, que defendeu posições religiosas heterodoxas ao longo de toda a sua vida, tinha também uma concepção do código cósmico; para ele, o Universo era um grande enigma que tinha de ser resolvido. I. I. Rabi, um físico atômico, contou que se interessou pela primeira vez pela ciência quando requisitou numa biblioteca alguns livros sobre movimentos planetários. O fato de a mente humana poder conhecer coisas tão imensas que não eram por ela imaginadas constituía para ele motivo de espanto e admiração. Heinz R. Pagels, quando adolescente, lendo a biografia de Einstein, o livro One, Two… Infinity,  de George Gamow, e o Exploring the Atom, livro de Selig Hevht, decidiu ser físico: para ele não havia nada mais gratificante do que resolver o enigma do cosmo; e a física, explorando o início e o fim do espaço, do tempo e da matéria, poderia realizar sua ambição.

 

Se aceitarmos a idéia de que o UNIVERSO é um livro lido pelos cientistas, deveríamos agora analisar como é que a sua leitura influencia a nossa civilização. Os cientistas libertaram uma nova força no nosso desenvolvimento político, social e conômico – talvez a maior força até agora libertada. Conhecendo a estrutura do Universo, cientistas e engenheiros inventam novos aparelhos e novas tenologias que alteram radicalmente o mundo em que vivemos. O que distingue este novo conhecimento é que a sua fonte está para além das instituições humanas: ele provém do próprio Universo. Pelo contrário, a literatura, a arte, o direito, a política e mesmo os métodos científicos foram por nós inventados. Mas nós não inventamos o Universo, a química dos nossos corpos, os átomos ou as ondas eletromagnéticas, descobertas que influenciam profundamente a nossa história e as nossas vidas. Poderia acontecer o código cósmico, revelado na arquitetura do Universo, ser, na realidade, um programa de evolução histórica?  

Arnold Toynbee afirmou que cada civilização  era a reação a um desafio. Os Romanos tinham o desafio de manter o domínio de um vasto império; a sua reação foi inventar um estado moderno. Da mesma forma, os Egípcios enfrentaram o desafio do sistema ecológico do rio Nilo construindo um complexo sistema de irrigação e uma estrutura política para o manter. O maior desafio à nossa civilização é dominar o código cósmico. As forças que a ciência descobriu no Universo podem aniquilar-nos. Podem também proporcionar a base para uma nova e mais gratificante existência humana. Ninguém sabe qual será a nossa reação a este desafio, mas certamente atingimos as frases do código cósmico que podem pôr fim à nossa existência ou, alternativamente, proporcionar o nascimento da humanidade no Universo.

Será que a ignorância e o desespero de um povo como os  indianos são conseqüência de suas crenças filosóficas e religiosas? (ou será o contrário?). Alguns intelectuais indianos pensavam que as grandes guerras do Ocidente, guerras que ceifaram milhões de vidas, eram fruto da filosofia, da ciência e da tecnologia ocidentais. O desafio à nossa civilização, que surgiu com o nosso conhecimento das energias cósmicas que alimentam as estrelas, do movimento da luz e dos elétrons através da matéria, da complicada ordem molecular que forma a base da vida, deve ser enfrentado através da criação de uma ordem moral e política que regule estas forças, pois, caso contrário, seremos destruídos. Serão necessários os nossos mais profundos recursos da razão e compaixão.

O nosso conhecimento recente proporciona ambém oportunidades ricas, complexas e muias vezes confusas. Podemos pensar que usamos a nossa liberdade ao fazermos as opções que entendemos, mas as próprias opções estão circunscritas por limites clarificados pela ciência moderna. O estado do Universo, do mundo e da vida humana é olhado por muita gente como produto da ciência, em lugar da descoberta da ciência. É uma sensação que tem por conseqüência um sentimento de alienação provocado pelo mundo tecnológico.

Heinz Pagels ilustra muito bem o impacto provocado pelas descobertas científicas na sociedade, quando nos relata seu encontro, em 1965, com uma senhora de idade, de olhos claros e vivos, pertencente a uma pequena comunidade que rejeitava o uso de máquinas (escreviam, por exemplo, com penas). A senhora, que era poetisa, disse-lhe que seu pequeno grupo continuava a acreditar no espírito humano, mas via esse mesmo espírito corrompido pela vida e pela tecnologia modernas. Ela explicou que um espírito demoníaco invadira a Terra havia cerca de trezentos anos, com o objetivo de a destruir. Todo o mal começou quando as melhores mentes de entre filósofos, cientistas e líderes sociais e políticos foram capturadas. Brevemente ficariam à solta os monstros da ciência, da tecnologia e do industrialismo. Pagels lembrara-se de William Blake, também poeta, que se lamentava da cegueira de Newton. A conquista estava quase terminanda, dizia ela; muito poucos resistiam à queda.

             

A senhora perguntou-lhe o que é que ele fazia e, quando  Pagels lhe disse que era físico, foi recebido com um olhar de horror. Era portanto um deles, um inimigo. Sentiu então uma enorme distância entre ele e a senhora. Um ano mais tarde, a Counterculture florescia na América; tinha-se instalado uma nova revolta contra a ciência.

Há ainda um caso de um jovem, que sofria de perturbações mentais, o qual corrobora os “males” da ciência. Conta Pagels que de um modo muito agitado, ele descreveu-lhe como os seres extraterrestres tinham invadido a Terra. Eram formados de uma substância mental, viviam nas mentes humanas e controlavam-nas através da criação da ciência e da tecnologia. Estes seres teriam o objetivo de gozar uma existência autônoma na forma de computadores gigantes, e não teriam então necessidade dos humanos; isso assinalaria  o seu triunfo e o fim da humanidade. Pouco depois foi hospitalizado porque não conseguia afastar esta visão.

A velha poetiza e o jovem estão corretos na sua percepção de que a ciência e a tecnologia vieram do “exterior” da experiência humana. Eles foram sensíveis a esta percepção de uma forma muito excessiva. O que nos é exterior é o Universo enquanto revelação material, mensagem a que Pagels chama de código cósmico e que programa hoje em dia o desenvolvimento econômico e social da humanidade. O que pode ser apercebido como ameaçador neste contato é que os cientistas, ao lerem o código cósmico, penetraram na estrutura invisível do Universo. Vivemos hoje uma revolução científica comparável à que ocorreu quando Copérnico demoliu o mundo antropocêntrico, revolução que começou com a invenção da teoria da relatividade e da mecânica quântica, no início deste século, e que ultrapassou muitas pessoas. Pela própria natureza dos fenômenos que estuda, a ciência tornou-se cada vez mais abstrata. O código cósmico tornou-se invisível; o invisível influencia o visível.

A transformação irreversível dos padrões da existência humana pela ciência constitui uma perturbadora experiência de que muitas pessoas nem se aperceberam porque estão demasiado próximas dela. Muitos de nós vivemos em grandes cidades com milhões de habitantes que pura e simplesmente não poderiam ter existido há alguns séculos, devido aos problemas de fornecimento de alimentos e de higiene. Aceitamos a tecnologia como parte das nossas vidas porque a nossa sobrevivência depnde dela. Os peritos e os cientistas asseguram-nos que tudo irá correr bem porque ela é apoiada pelas regras da razão. Mas outros, como a poetisa, vêem a razão como ferramenta do demônio, como instrumento para a destruição da vida e da fé simples. Eles vêem o cientista como destruidor do espírito humano, enquanto o cientista considera os aliados da poetisa cegos para as exigências materiais da sobrevivência humana. O que divide é a diferença entre aqueles que privilegiam as intuições e os sentimentos e aqueles que privilegiam o conhecimento e a razão – recursos diferentes da vida humana. Ambos os impulsos estão dentro de nós; mas por vezes não conseguimos uma síntese útil, e o resultado é um ser incompleto.

No século XIII, a filosofia escolástica tentou reconciliar a fé com a razão. Não teve êxito, mas do seu fracasso nasceu uma nova civilização: o mundo moderno, no qual a dialética entre fé e razão continua de pé. Não devemos optar por um dos termos da dialética: ela deve ser considerada como uma oposição que transforma a vida. A capacidade de realização só pode vir através da fé e dos sentimentos. Mas a capacidade de sobrevivência só surge da razão e do conhecimento.

Será a ciência moderna hostil à nossa humanidade? Max Born, um dos criadores da teoria quântica, exprimiu a sua preocupação sobre a permanência da aventura científica nos últimos trezentos anos. A ciência contemporânea, pensava ele, não tem um lugar fixo e sólido na vida humana, ao contrário da política, da religião ou do comércio. Ele perguntava se o gênero humano podia alguma vez abandonar a ciência. Se isso acontecesse, seria cortado o nosso ainda frágil laço ao código cósmico, erro que poderia custar-nos a existência. É possível que os historiadores do futuro verão a civilização contemporânea como reação à descoberta dos mundos das moléculas, dos átomos e das extensões inimagináveis do espaço e do tempo. O desafio é de trazer estes domínios invisíveis à nossa consciência e tornar humanos os enormes poderes que neles encontramos.

Ciência é outro nome para conhecimento, e ainda não descobrimos nenhum limite para o conhecimento, ainda que tenhamos descoberto muitos outros limites. Mas o conhecimento não é suficiente. Ele deve ser temperado por um sentimento de justiça, pela vida moral e pela nossa capacidade para o amor e para servir a comunidade. A ciência traz-nos uma apreciação renovadora da condição humana: as limitações da nossa existência no Universo. Através da expansão do conhecimento científico tomamos conhecimento não só dos avanços das nossas possibilidades materiais, mas também das nossas limitações intrínsecas.

O livro Gênesis conta-nos a história dos nossos primeiros pais, que foram criados pelo Senhor e colocados num jardim paradisíaco. Havia duas árvores , a árvore do conhecimento e a árvore da vida, e o Senhor proibiu-os de comer o fruto da árvore do conhecimento. Os nossos primeiros pais provaram do conhecimento e conheceram, assim, o bem e o mal. Eles podiam agora tornar-se, como o Senhor, potencialmente donos de um conhecimento infinito. O Senhor expulsou-os do jardim antes de eles terem provado o fruto da árvore da vida e terem assim uma vida inifinita. A humanidade enfrenta uma visão de conhecimento infinito a partir de um estado de existência finita.

A ciência não é inimiga da humanidade, mas sim uma das mais profundas expressões do desejo humano de ralizar este conhecimento infinito. A ciência mostra-nos que o mundo visível não é matéria nem espírito; o mundo visível é a organização invisível de energia. Não se sabe quais serão as próximas frase do código cósmico. Mas parece certo que o recente contato humano com o mundo invisível dos quanta e com a vastidão do Cosmo modelará o destino da nossa espécie ou daquilo em que esta se tornar.

Heinz Pagels revela-nos, ainda, que muitas vezes sonhou com quedas. Esses são comuns para os ambiciosos e para os alpinistas. Certa vez sonhara que se agarrava a uma rocha que subitamente se desprendeu.Tentou agarrar-se a um arbusto, mas ele cedeu e, num terror gelado, caiu no abismo. De repente apercebeu-se de que a sua queda era apenas relativa; não havia fim para ela. Encheu-se então de uma sensação de prazer: Compreendi que aquilo que eu representava, o princípio da vida, não pode ser destruído. Está inscrito no código cósmico, na ordem do universo. À medida que continuei a cair no vazio, abracei a abóboda celeste, cantei a beleza das estrelas e reconciliei-me com a escuridão.

 

Fontepesquisada: (Heinz Pageles, O CÓDIGO CÓSMICO, Gradativa, lisboa, 1982)  

 

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MANIFESTO DO SURREALISMO I (ANDRÉ BRETON – 1924)

        

O Surrealismo foi um movimento artístico e literário surgido primariamente em Paris dos anos 20, inserido no contexto das vanguardas que viriam a definir o modernismo, reunindo artistas anteriormente ligados ao Dadaísmo e posteriormente expandido para outros países. Fortemente influenciado pelas teorias psicanalíticas de Sigmund Freud (1856-1939), o surrealismo enfatiza o papel do inconsciente na atividade criativa. Seus representantes mais conhecidos são Max Ernst, René Magritte e Salvador Dalí no campo das artes plásticas, André Breton na literatura e Luis Buñuel no cinema.

Tendo suas características resultado da combinação do representativo, do abstrato, e do psicológico, para os surrealistas a arte deve se libertar das exigências da lógica e da razão e ir além da consciência cotidiana, expressando o inconsciente e os sonhos. O principal teórico e líder do movimento é o poeta, escritor, crítico e psiquiatra francês André Breton (18961966), que em 1924 publica o primeiro Manifesto Surrealista.

No manifesto e nos textos teóricos posteriores, os surrealistas rejeitam a chamada ditadura da razão e os valores burgueses como pátria, família, religião, trabalho e honra. Humor, sonho e a contra-lógica são recursos a serem utilizados para libertar o homem da existência utilitária. Segundo a nova ordem, as idéias de bom gosto e decoro devem ser subvertidas. Neste sentido, o Surrealismo aproximava-se daquelas que eram chamadas de vanguardas positivas, como o neoplasticismo e a Bauhaus, chegando inclusive a dialogar com o movimento comunista. No entanto, pela sua proposta estética, está mais próximo das vanguardas negativas, como o supracitado dadá, de onde surgiu parcialmente

Uma das principais idéias trabalhadas pelos surrealistas é a da escrita automática, segundo a qual o impulso criativo artístico se dá através do fluxo de consciência despejado sobre a obra. Ainda segundo esta idéia, a arte não é produto de gênios, mas de cidadãos comuns.

(…) Agora, debruçados no manifesto, texto abaixo, tentemos como cidadãos comuns compreender a proposta do movimento surrealista: esta, baseada na concepção de que é no inconciente que se revela a mais alta realidade (super-realidade) da existência, afirma que o processo de exprimí-la deve ser a transcrição pura e simples do automatismo psíquico.   

 

Tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem entendido, a vida real, que afinal esta crença se perde. O homem, esse sonhador definitivo, cada dia mais desgostoso com seu destino, a custo repara nos objetos de seu uso habitual, e que lhe vieram por sua displicência, ou quase sempre por seu esforço, pois ele aceitou trabalhar, ou pelo menos, não lhe repugnou tomar sua decisão ( o que ele chama decisão! ) . Bem modesto é agora o seu quinhão: sabe as mulheres que possuiu, as ridículas aventuras em que se meteu; sua riqueza ou sua pobreza para ele não valem nada, quanto a isso, continua recém-nascido, e quanto à aprovação de sua consciência moral, admito que lhe é indiferente. SE conservar alguma lucidez, não poderá senão recordar-se de sua infância, que lhe parecerá repleta de encantos, por mais massacrada que tenha sido com o desvelo dos ensinantes. Aí, a ausência de qualquer rigorismo conhecido lhe dá a perspectiva de levar diversas vidas ao mesmo tempo; ele se agarra a essa ilusão; só quer conhecer a facilidade momentânea, extrema, de todas as coisas. Todas as manhãs, crianças saem de casa sem inquietação. Está tudo perto, as piores condições materiais são excelentes. Os bosques são claros ou escuros, nunca se vai dormir.

Mas é verdade que não se pode ir tão longe, não é uma questão de distância apenas. Acumulam-se as ameaças, desiste-se, abandona-se uma parte da posição a conquistar. Esta imaginação que não admitia limites, agora só se lhe permite atuar segundo as leis de uma utilidade arbitrária; ela é incapaz de assumir por muito tempo esse papel inferior, e quando chega ao vigésimo ano prefere, em geral, abandonar o homem ao seu destino sem luz.

Procure ele mais tarde, daqui e dali, refazer-se por sentir que pouco a pouco lhe faltam razões para viver,incapaz como ficou de enfrentar uma situação excepcional, como seja o amor, ele muito dificilmente o conseguirá. É que ele doravante pertence, de corpo e alma, a uma necessidade prática imperativa, que não permite ser desconsiderada. Faltará amplidão a seus gostos, envergadura a suas idéias. De tudo que lhe acontece e pode lhe acontecer, ele só vai reter o que for ligação deste evento com uma porção de eventos parecidos, nos quais não toma parte, eventos perdidos. Que digo, ele fará sua avaliação em relação a um desses acontecimentos, menos aflitivo que os outros, em suas conseqüências. Ele não descobrirá aí, sob pretexto algum, sua salvação.

Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares.

Só o que me exalta ainda é a única palavra, liberdade. Eu a considero apropriada para manter, indefinidamente, o velho fanatismo humano. Atende, sem dúvida, à minha única aspiração legítima. Entre tantos infortúnios por nós herdados, deve-se admitir que a maior liberdade de espírito nos foi concedida. Devemos cuidar de não fazer mau uso dela. Reduzir a imaginação à servidão, fosse mesmo o caso de ganhar o que vulgarmente se chama a felicidade, é rejeitar o que haja, no fundo de si, de suprema justiça. Só a imaginação me dá contas do que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a interdição terrível; é bastante também para que eu me entregue a ela, sem receio de me enganar ( como se fosse possível enganar-se mais ainda ). Onde começa ela a ficar nociva, e onde se detém a confiança do espírito? Para o espírito, a possibilidade de errar não é, antes, a contingência do bem?

Fica a loucura. “a loucura que é encarcerada”, como já se disse bem. Essa ou a outra.. Todos sabem, com efeito, que os loucos não devem sua internação senão a um reduzido número de atos legalmente repreensíveis, e que, não houvesse estes atos, sua liberdade ( o que se vê de sua liberdade ) não poderia ser ameaçada. Que eles sejam, numa certa medida, vítimas de sua imaginação, concordo com isso, no sentido de que ela os impele à inobservância de certas regras, fora das quais o gênero se sente visado, o que cada um é pago para saber. Mas a profunda indiferença de que dão provas em relação às críticas que lhe fazemos, até mesmo quanto aos castigos que lhes são impostos, permite supor que eles colhem grande reconforto em sua imaginação e apreciam seu delírio o bastante para  suportar que só para eles seja válido. E, de fato, alucinações, ilusões, etc. são fonte de gozo nada desprezível. A mais bem ordenada sensualidade encontra aí sua parte, e eu sei que passaria muitas noites a amansar essa mão bonita nas últimas páginas do livro. A Inteligência de Taine, se dedica a singulares malefícios. As confidências dos loucos, passaria minha vida a provoca-las. São pessoas de escrupulosa honestidade, cuja inocência só tem a minha como igual. Foi preciso Colombo partir com loucos para descobrir a América. E vejam como essa loucura cresceu, e durou.

Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a bandeira da imaginação.

O processo da atitude realista deve ser instruído, após o processo da atitude materialista. Esta, aliás, mais poética que a precedente, implica da parte do homem um orgulho sem dúvida monstruoso, mas não uma nova e mais completa deposição. Convém nela ver, antes de tudo, uma feliz reação contra algumas tendências derrisórias do espiritualismo. Enfim, ela não é incompatível com uma certa elevação de pensamento.

Ao contrário, a atitude realista, inspirada no positivismo, de São Tomás a Anatole France, parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade, ódio e insípida presunção. É ela a geradora hoje em dia desses livros ridículos, dessas peças insultuosas. Fortifica-se incessantemente nos jornais , e põe em xeque a ciência, a arte, ao aplicar-se em bajular a opinião nos seus critérios mais baixos; a clareza vizinha da tolice, a vida dos cães. Ressente-se com isso a atividade dos melhores espíritos; a lei do menor esforço afinal se impõe a eles como aos outros. Conseqüência divertida deste estado de coisas, em literatura, é a abundância dos romances. Cada um contribui com sua pequena “observação”. Por necessidade de depuração o sr. Paul Valéry propunha recentemente fazer antologia do maior número possível de começos de romances cuja insensatez ele muito esperava. Os mais famosos autores seriam chamados a participar. Tal idéia dignificava também Paul Valéry, que, não há muito, a propósito dos romances, me garantia que, ele, sempre se recusaria a escrever: “A marquesa saiu às cinco horas.” Mas cumpriu ele a sua palavra?

Se o escrito de informação pura e simples de que a frase precipitada é exemplo, tem emprego corrente nos romances certamente é por não ir longe a ambição dos autores. O caráter circunstancial, inutilmente particular, de cada notação sua, me faz pensar que estão se divertindo, eles, à minha custa. Não me poupam nenhuma hesitação do personagem: será louro, como se chama, vamos sair juntos no verão? Outras tantas perguntas resolvidas decisivamente, ao acaso; só me restou o poder discricionário de fechar o livro, o que não deixo de fazer, ainda perto da primeira página. E as descrições! Nada se compara ao seu vazio; são superposições de imagens de catálogo, o autor as toma cada vez mais sem cerimônia, aproveita para me empurrar seus cartões postais, procura fazer-me concordar com os lugares-comuns:

A salinha onde foi introduzido o moço era forrada de papel amarelo: havia gerânios e cortinas de musselina nas janelas; o sol poente jogava sobre tudo isso uma luz clara… O quarto não continha nada de particular. Os móveis, de madeira amarela, eram todos velhos. Um sofá com grande encosto inclinado, uma mesa oval diante do sofá, um toucador, com espelho, entre as janelas, cadeiras encostadas às paredes, duas ou três gravuras sem valor, representando moças alemãs com pássaros nas mãos – eis a que se reduzia a mobília. ( Dostoievski, Crime e Castigo ) 

Que o espírito se proponha, mesmo por pouco tempo, tais motivos, não tenho disposição para admiti-lo. Podem sustentar que este desenho clássico está no lugar certo e que neste passo do livro o autor tem seus motivos para me esmagar. Perde seu tempo, pois não entro no seu quarto. A preguiça, a fadiga dos outros não me prendem. Tenho da continuidade da vida uma noção instável demais para igualar aos melhores os meus momentos de depressão, de fraqueza. Quero que se calem, quando param de ressentir. E entendam bem que não incrimino a falta de originalidade pela falta de originalidade. Digo apenas que não faço caso dos momentos nulos de minha vida, que da parte de qualquer homem pode ser indigno de cristalizar aqueles que lhe parecem tais. Esta descrição de quarto, e muitas outras, permitam-me, digo: passo.

Ora, cheguei à psicologia, e com este assunto nem penso em brincar.

O autor pega-se com um personagem, e escolhido este, faz seu herói peregrinar pelo mundo. Haja o que houver, este herói, cujas ações são admiravelmente previstas, tem a incumbência de não desmanchar, parecendo porém sempre desmanchar, os cálculos de que é objeto. As vagas da vida podem parecer arrebata-lo, roda-lo, afunda-lo, ele sempre dependerá deste tipo humano  formado. Simples partida de xadrez, da qual me desinteresso mesmo, sendo o homem, qualquer um, um medíocre adversário para mim. Não posso é suportar estas reles discussões de tal ou qual lance, desde que não se trata nem de ganhar nem de perder. E se o jogo não vale um caracol, se a razão objetiva prejudica terrivelmente, como é o caso, quem nela confia, não convirá fazer abstração destas categorias? “É tão ampla a diversidade, que todos os tons de voz, todos os passos, tosses assôos, espirros…” Se um cacho de uvas não tem duas sementes iguais, como querem que lhes descreva este bago pelo outro, por todos os outros, que dele faça um bago bom para comer? Esta intratável mania de reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificável, embala os cérebros. O desejo de análise prevalece sobre os sentimentos. Disso resultam dilatadas exposições cuja força persuasiva reside na sua própria singularidade, e que iludem o leitor pelo recurso a um vocabulário abstrato, bastante mal definido, aliás. Se as idéias gerais que a filosofia se propõe até aqui debater, marcassem por aí sua incursão definitiva num domínio mais extenso, seria eu o primeiro a me alegrar. Mas por enquanto é só afetação; até aqui os ditos espirituosos e outras boas maneiras nos encobrem à porfia o verdadeiro pensamento que se busca ele próprio, em vez de se ocupar em obter sucessos. Parece-me que todo ato traz em si mesmo sua justificação, ao menos para quem foi capaz de comete-lo, que ele é dotado de um poder radiante que a mínima glosa, por natureza, enfraquece. Devido a esta última ele deixa mesmo, de certo modo, de se produzir. Não ganha nada com esta distinção. Os heróis de Stendhal caem aos golpes deste autor, apreciações mais ou menos felizes, que nada acrescentam à sua glória. Onde os encontraremos de fato, é onde Stendhal os perdeu.       

Ainda vivemos sob o império da lógica, eis aí, bem entendido, onde eu queria chegar. Mas os procedimentos lógicos, em nossos dias, só se aplicam à resolução de problemas secundários. O racionalismo absoluto que continua em moda não permite considerar senão fatos dependendo estreitamente de nossa experiência. Os fins lógicos, ao contrário, nos escapam. Inútil acrescentar que à própria experiência foram impostos limites. Ela circula num gradeado de onde é cada vez mais difícil faze-la sair. Ela se apóia, também ela, na utilidade imediata, e é guardada pelo bom senso. A pretexto de civilização e de progresso conseguiu-se banir do espírito tudo que se pode tachar, com ou sem razão, de superstição, de quimera; a proscrever todo modo de busca da verdade, não conforme ao uso comum. Ao que parece, foi um puro acaso que recentemente trouxe à luz uma parte do mundo intelectual, a meu ver, a mais importante, e da qual se afetava não querer saber. Agradeça-se a isso às descobertas de Freud. Com a fé nestas descobertas desenha-se afinal uma corrente de opinião, graças à qual o explorador humano poderá levar mais longe suas investigações, pois que autorizado a não ter só em conta as realidades sumárias. Talvez esteja a imaginação a ponto de retomar seus direitos. Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo interesse em captá-las, capta-las primeiro, para submete-las depois, se for o caso, ao controle de nossa razão. Os próprios analistas só têm a ganhar com isso. Mas é importante observar que nenhum meio está a priori designado para conduzir este empreendimento, que até segunda ordem pode ser também considerado como sendo da alçada dos poetas, tanto como dos sábios, e o seu sucesso não depende das vias mais ou menos caprichosas a serem seguidas.

 

Com justa razão Freud dirigiu sua crítica para o sonho. É inadmissível, com efeito, que esta parte considerável da atividade psíquica ( pois que, ao menos do nascimento à morte do homem, o pensamento não tem solução de continuidade, a soma dos momentos de sonho, do ponto de vista do tempo a considerar só o sonho puro, o do sono, não é inferior à soma dos momentos de realidade, digamos apenas: dos momentos de vigília ) não tenha recebido a atenção devida. A extrema diferença de atenção, de gravidade, que o observador comum confere aos acontecimentos da vigília e aos do sono, é caso que sempre me espantou. É que o homem, quando cessa de dormir, é logo o joguete de sua memória, a qual, no estado normal, deleita-se em lhe retraçar fracamente as circunstâncias do sonho, em privar este de toda conseqüência atual,  e em despedir o único  determinante do ponto onde ele julga tê-lo deixado, poucas horas antes: esta esperança firme, este desassossego. Ele tem a ilusão de continuar algo que vale a pena. O sonho fica assim reduzido a um parêntese, como a noite. E como a noite, geralmente também não traz bom conselho. Este singular estado de coisas parece-me conduzir a algumas reflexões:

1.º nos limites onde exerce sua ação ( supõe-se que a exerce ) o sonho, ao que tudo indica, é contínuo, e possui traços de organização. A memória arroga-se o direito de nele fazer cortes, de não levar em conta as transições, e de nos apresentar antes uma série de sonhos do o sonho. Assim também, a cada instante só temos das realidades uma figuração distinta, cuja coordenação é questão de vontade. Importa notar que nada nos permite induzir a uma maior dissipação dos elementos constitutivos do sonho. Lamento falar disso segundo uma fórmula que exclui o sonho, em princípio. Quando virão os lógicos, os filósofos adormecidos? Eu gostaria de dormir, para poder me entregar aos dormidores, como me entrego aos que lêem, olhos bem abertos; para cessar de fazer prevalecer nesta matéria o ritmo consciente de meu pensamento. Meu sonho desta última noite talvez prossiga o da noite precedente, e seja prosseguido na próxima noite, com louvável rigor. É bem possível, como se diz. E como não está de modo nenhum provado que, fazendo isso, a “realidade” que me ocupa subsista no estado de sonho, que Lea não afunde no imemorial, porque não haveria eu de conceder ao sonho o que recuso por vezes à realidade, seja este valor de certeza em si mesma, que, em seu tempo, não está exposta a meu desmentido? Por que não haveria eu de esperar do indício do sonho mais do que espero de um grau de consciência cada dia mais elevado? Não se poderia aplicar o sonho, ele também, resolução de questões fundamentais da vida? Serão estas perguntas as mesmas num caso como no outro, e no sonho elas já estão? O sonho terá menos peso de sanções que o resto? Envelheço, e mais que esta realidade à qual penso me adstringir, é talvez o sonho, a indiferença que lhe dedico, que me faz envelhecer;

2.º. retomo o estado de vigília. Sou obrigado a considera-lo um fenômeno de interferência. Não apenas o espírito manifesta, nestas condições, uma estranha tendência à desorientação (é a história dos lapsos e enganos de toda espécie cujo segredo começa a nos ser entregue) mas ainda não parece que, em seu funcionamento normal, ele obedeça a outra coisa senão a sugestões que lhe vêm desta noite profunda das quais eu recomendo. Por mais bem condicionado que ele esteja, seu equilíbrio é relativo. Mal ousa expressar-se, e se o faz, é para limitar à constatação de que tal idéia, tal mulher, lhe faz impressão. Que impressão, seria incapaz de dize-lo, dando assim a medida de seu subjetivismo, e nada mais. Esta idéia, esta mulher, o perturba, predispõe-no a menos severidade. Ela tem a ação de isola-lo um segundo de seu solvente e de deposita-lo no céu, como belo precipitado que ele pode ser, que ele é. Em desespero de causa, invoca ele o acaso, divindade mais obscura que as outras, à qual atribui todos os seus desvarios. Que me diz que o ângulo sob o qual se apresenta esta idéia que o afeta, o que ele ama no olho desta mulher não é precisamente o que o liga a seu sonho, o prende a dados que ele perdeu por sua culpa? E se isso fosse de outro modo, do que não seria ele capaz, talvez? Eu gostaria de dar-lhe a chave deste corredor; 

3.º. o espírito do homem que sonha se satisfaz plenamente com o que lhe acontece. A angustiante questão da possibilidade não mais está presente. Mata, vi mais depressa, ama tanto quanto quiseres. E se morres, não tens certeza de despertares entre os mortos? Deixa-te levar, os acontecimentos não permitem que os retardes. Não tens nome. É inapreciável a facilidade de tudo.

Que razão, eu te pergunto, razão tão maior que outra, confere ao sonho este comportamento natural, me  faz acolher sem reserva uma porção de episódios cuja singularidade, quando escrevo, me fulminaria? E no entanto, posso crer nos meus olhos, nos meus ouvidos: chegou o belo dia, esse bicho falou.

Se o despertar do homem é mais duro, se ele quebra muito bem o encanto, é que o levaram a ter uma raça idéia da expiação;

4.º. do momento em que seja submetido a um exame metódico, quando, por meios a serem determinados, se chegar a nos dar conta do sonho em sua integridade (isto supõe um disciplina da memória que atinge gerações; mesmo assim comecemos a registrar os fatos salientes), quando sua curva se desenvolve com regularidade e amplidão sem iguais, então se pode esperar que os seus mistérios, não mais o sendo, dêem lugar ao grande Mistério. Acredito na resolução futura destes dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer.

Parto à sua conquista, certo de não consegui-la, mas bem despreocupado com minha morte, vou suputar um pouco os prazeres de tal posse.

Conta-se que todo o dia, à hora de dormir, Saint-Roux mandava colocar à porta de seu solar em Camaret um cartaz onde se lia: O POETA TRABALHA. Muito haveria ainda a dizer, mas de passagem, só quis aflorar um assunto que, por si só, necessitaria um alongado discurso e um maior rigor; voltarei a esse ponto. Desta vez, minha intenção era dizer a verdade sobre o ódio ao maravilhoso que grassa em certos homens, deste ridículo no qual o querem fazer cair. Falando claro: o maravilhoso é sempre belo, qualquer maravilhoso é belo, só mesmo o maravilhoso é belo.

No domínio literário, só o maravilhoso é capaz de fecundar obras dependentes de um gênero inferior, como o romance, e de modo geral, de tudo que participa da anedota. Uma prova admirável é O Monge, de Lewis. O sopro do maravilhoso o anima por inteiro. Bem antes de o autor ter libertado seus principais personagens de qualquer coerção temporal, já se percebe que estão prontos para agir com altivez sem precedente. Esta paixão da eternidade, que os exalta sem cessar, confere inesquecíveis acentos a seu tormento e ao meu. Entendo que este livro só exalta, do começo ao fim, e da forma mais pura do mundo, aquilo que do espírito aspira a deixar o chão, e que, despojado de uma parte insignificante de sua afabulação romanesca, à moda do tempo, constitui um modelo de justeza, de inocente grandiosidade. parece-me que não se fez melhor, e a personagem de Matilde, em particular, é a criação mais comovente que se possa pôr ao ativo deste modo figurado em literatura. É menos um personagem que uma contínua tentação. E se um personagem não é uma tentação, o que é? Tentação extrema aquela. O “nada é impossível a quem sabe ousar” dá em  O Monge toda a sua convincente medida. As aparições aí têm um papel lógico, pois que o espírito crítico não se apodera delas para contesta-las. Também o castigo de Ambrósio é tratado de maneira legítima, pois é finalmente aceito pelo espírito crítico como desenlace natural.

Pode parecer arbitrário que eu proponha este modelo, quando se trata do maravilhoso, do qual as literaturas no Norte e as literaturas orientais tiraram subsídios e mais subsídios, sem falar das literaturas propriamente religiosas de toda a parte. É que a maior parte dos exemplos que estas literaturas poderiam me fornecer estão eivadas de puerilidade, pela boa razão de serem dirigidas às crianças. Cedo elas são cortadas do maravilhoso, e mais tarde, não guardaram suficiente virgindade de espírito para sentirem extremo prazer com Pele de Asno. Por mais encantadores que sejam, o homem julgaria decair ao se nutrir de contos de fadas, e concordo que estes não são todos de sua idade. O tecido de adoráveis inverossimilhanças requer mais finura, à medida que se avança, e ainda se está à espera destas espécies de aranhas… Mas as faculdades não mudam radicalmente. O medo, a atração do insólito, as chances, o gosto do luxo são molas às quais não se apela em vão. Há contos a escrever para adultos, contos de fadas, quase.

Fontepesquisada:(http://www.culturabrasil.org/breton.htm)

 

 

 POSTED SELETINOF 4:33 PM  

       

MANISFESTO DO SURREALISMO II (ANDRÉ BRETON – 1924)

   

O maravilhoso não é o mesmo em todas as épocas; participa obscuramente de uma classe de revelação geral, de que só nos chega o detalhe: são as ruínas românticas, o manequim moderno ou qualquer outro símbolo próprio a comover a sensibilidade humana por algum tempo. Nestes quadros que nos fazem sorrir, no entanto sempre se pinta a inquietação humana, e é por isso que os levo a sério, que os julgo inseparáveis de algumas produções geniais, as quais, mais que as outras, estão dolorosamente impregnadas dessa inquietação. São os patíbulos de Villon, as gregas de Racine, os divãs de Baudelaire. Coincidem com um eclipse do gosto que sou feito para suportar, eu que tenho do gosto a idéia de um grande defeito. No mau gosto de minha época, procuro ir mais longe que os outros. Para mim, se eu tivesse vivido em 1820, para mim “a freira sangrenta”, a mim, não poupar este sorrateiro e banal dissimulons de que fala o periódico Cuisin, a mim, a mim, percorrer em metáforas, como ele diz, todas as fases do “disco prateado”. Por hoje, penso num castelo, cuja metade não está obrigatoriamente em ruína; este cabelo me pertence, eu o vejo num sítio agreste, não longe de Paris. Suas dependências não acabam mais e, quanto ao interior, foi terrivelmente restaurado, de modo a nada deixar a desejar, em matéria de conforto. Junto à porta, encoberta pela sombra das árvores, estão os automóveis, estacionados. Alguns de meus amigos aí estão, em permanência: eis o Louis Aragon que parte – ele só tem tempo para cumprimentar-nos; Philippe Soupault se levanta com as estrelas Paul Eluard, nosso grande Eluard, ainda não voltou. Eis Robert Desnos e Roger Vitrac, que decifram no parque um velho edital sobre o duelo; Georges Auric, Jean Paulhan, Max Morise, que rema tão bem, Benjamin Péret, em suas equações de pássaros; e Joseph Delteil; e Jean Carrive; e Georges Limbour (há uma fileira de Georges Limbour); e Marcel Noll; eis T. Traenkel que nos acena de seu balão cativo, Georges Malkine, Antonin Artaud, Francis Gerard, Pierre Naville, J. A . Boiffard, depois Jacques Baron e seu irmão, belos e cordiais, tantos outros ainda, e mulheres deslumbrantes, palavra. Estes jovens não podem se recusar nada, seus desejos são, para a riqueza, ordens. Francis Picabia vem nos visitar e, na semana passada, recebeu-se na galeria dos espelhos um tal Marcel Duchamp que ainda não se conhecia. Picasso caça aí por perto. O espírito de desmoralização ergueu domicílio no castelo, e é com ele que tratamos sempre que há problema de relação com nossos semelhantes, mas as portas estão sempre abertas, e sabeis, não se  começa “agradecendo” às pessoas. De mais a mais, a solidão é vasta, não nos encontramos muito. Pois o essencial não é sermos senhores de nós mesmos, das mulheres, do amor também?

Vão atribuir-me uma mentira poética; cada um vai dizer que moro na Rua Fontaine, e que não vai beber desta água. Na verdade! mas este castelo cujas honras lhe faço, tem ele certeza que seja uma viagem? E se, não obstante, o palácio existisse? Meus hóspedes estão aí para responderem por isso; seu capricho é a estrada luminosa que aí conduz. Vivemos de fato à nossa fantasia, quando estamos lá. E como o que um faz poderia incomodar o outro, ali, ao abrigo da procura sentimental e dos encontros ocasionais?

O homem põe e dispõe. Depende dele só pertencer-se por inteiro, isto é, manter em estado anárquico o bando cada vez mais medonho de seus desejos. A poesia ensina-lhe isso. Traz nela a perfeita compensação das misérias que padecemos. Ela pode ser também uma ordenadora, bastando que ao golpe de uma decepção menos íntima se tenha a idéia de tomá-la ao trágico. Venha o tempo quando ela decrete o fim do dinheiro e parta,  única, o pão do céu para a terra! Haverá ainda assembléias nas praças públicas, e movimentos dos quais não pensaste participar. Adeus seleções absurdas, sonhos de abismo, rivalidades, longas paciências, a evasão das estações, a ordem artificial das idéias, a rampa do perigo, tempo para tudo! Basta se Ter o trabalho de praticar a poesia. Não é a nós que compete, que já vivemos dela, o esforço de fazer prevalecer o que guardamos para nossa mais ampla inquietação?

Não importa se há desproporção entre esta defesa e a ilustração que vai segui-la. Tratava-se de remontar às fontes de imaginação poética, e mais ainda, ficar aí. Não tenho a pretensão de ter feito isso. É preciso muito domínio sobre si, para querer se estabelecer nestas recuadas regiões onde tudo parece andar tão mal, e com maior razão, para querer aí conduzir alguém. E nunca se tem certeza de aí estar em absoluto. Como não se vai gostar, fica-se disposto a se deter em outra parte. A verdade é que agora uma flecha indica a direção destes lugares e que alcançar a meta verdadeira só depende de resistência do viajante.

Conhece-se, pouco mais ou menos, o caminho percorrido. Tive o cuidado de contar, no decurso de um estudo sobre o caso de Robert Desnos, intitulado: ENTRADA DOS MÉDIUNS, que eu tinha sido levado a “fixar minhas atenções sobre frases mais ou menos parciais, que em plena solidão, quase pegando no sono, ficam perceptíveis para o espírito, sem ser possível descobrir-lhes uma determinação prévia”. Eu mal acabara de tentar uma aventura poética, com o mínimo de chances, isto é, minhas aspirações eram as mesmas de hoje, mas eu tinha fé na lentidão de elaboração para fugir a contatos inúteis, contatos que eu reprovava intensamente. Era o pudor do pensamento, de que me sobra ainda alguma coisa. No fim de minha vida, com dificuldade chegarei a falar como falam todos, culpa de minha voz e de meus gestos escassos. A virtude da palavra (da escrita: bem maior) me parecia ligada à faculdade de encurtar de modo marcante a exposição (pois era uma exposição) de alguns poucos fatos, poéticos ou outros, substanciais para mim. Em minha idéia, não era outro o processo usado por Rimbaud. Eu compunha, e o meu empenho de variedade merecia melhor sorte, os últimos poemas do Mont de Pieté, isto é, conseguia tirar das linhas em branco desse livro um partido incrível. Essas linhas eram o olho fechado sobre operações de pensamento, que, julgava eu, deviam ser ocultadas do leitor. Não era trapaça, mas sim, gosto de precipitar as coisas. Eu obtinha a ilusão de uma cumplicidade possível, cada vez menos dispensável para mim. Eu pegara o vezo de afagar imoderadamente as palavras pelo espaço admitido em torno delas, por suas tangências com outras inumeráveis palavras não pronunciadas por mim. O poema FLORESTA-NEGRA marca exatamente este estado de espírito. Passei seis meses a escrevê-lo e, podem acreditar, não descansei um só dia. Mas tratava-se da estima que eu então me dedicava, não é bastante, compreendam. Adoro estas confissões estúpidas. Naquele tempo, a pseudopoesia cubista procurava se implantar, mas saíra desarmada do cérebro de Picasso, e quanto a mim, eu era tido como tão enfadonho quanto a chuva (ainda sou). Eu desconfiava, aliás, que do ponto de vista poético, eu estava no caminho errado, mas eu me safava como podia, desafiando o lirismo, a golpes de definição e de receitas (os fenômenos Dada não tardariam a se manifestar), e fingindo encontrar uma aplicação da poesia na publicidade (eu sustentava que o mundo acabaria, não por um belo livro, mas por uma bela propaganda do inferno e do céu).

Na mesma época, um homem, tão ou mais enfadonho que eu, Pierre Reverdy, escrevia:

A imagem é uma criação pura do espírito.

Ela não pode nascer da comparação, mas da aproximação de duas realidade mais ou menos remotas.

 

Quanto mais longínquas e justas forem as afinidades de duas realidades próximas, tanto mais forte será a imagem – mais poder emotivo e realidade poética ela possuirá… etc

 

Estas palavras, se bem que sibilinas para os profanos eram indicadores muito fortes, e sobre elas meditei longamente. Mas a imagem era fugidia. A estética de Reverdy, estética toda a posteriori, fazia-me tomar os efeitos pelas causas. Entrementes, fui obrigado a renunciar definitivamente a meu ponto de vista.

Certa noite então, antes de adormecer, percebi, nitidamente articulada a ponto de ser impossível mudar-lhe uma palavra, mas bem separada do ruído de qualquer voz, uma frase bem bizarra que me alcançava sem trazer indício dos acontecimentos aos quais, segundo o testemunho de minha consciência, eu estava preso, nessa ocasião, frase que me pareceu insistente, frase, se posso ousar, que batia na vidraça. Rapidamente tive a sua noção, e já me dispunha a passar adiante quando o seu caráter orgânico me reteve. Na verdade, esta frase me espantava; infelizmente não a guardei até hoje, era algo como: “Há um homem cortado em dois pela janela”, mas não poderia haver ambigüidade, acompanhada como estava pela fraca representação visual de um homem andando, e seccionado a meia altura por uma janela perpendicular ao eixo de seu corpo. Fora de dúvida era a simples aprumação no espaço de um homem debruçado à janela. Mas esta janela tendo seguido o deslocamento do homem vi que se tratava de uma imagem de tipo bastante raro e logo pensei em incorporá-la a meu material de construção poética. Assim que lhe concedi este crédito ela deu lugar a uma sucessão quase ininterrupta de frases que não me surpreenderam menos e me deixaram sob a impressão de uma tal gratuidade que me pareceu ilusório o império que até então eu mantinha sobre mim mesmo, e só pensei então em liquidar a interminável disputa travada em mim (Knut Hamsun põe na dependência da fome este tipo de revelação que me assaltou, e talvez não esteja ele errado (o fato é que nessa época eu não comia todos os dias). Com toda certeza são de fato as mesmas manifestações que ele relata nestes termos:  

“No dia seguinte acordei cedo. Estava ainda escuro. Meus olhos estavam abertos fazia tempo, quando ouvi o relógio do apartamento inferior bater cinco horas. Quis novamente dormir mas não consegui, eu estava completamente desperto e mil coisas baralhavam na minha cabeça. De repente me vieram uns bons trechos, próprios para utilização num esboço, num folhetim; subitamente, por acaso, achei frases muito bonitas, frases como jamais escreverei. Eu as repetia lentamente, palavra por palavra, eram excelentes. E vinham mais outras. Levantei-me, peguei lápis e papel na mesa atrás de minha cama. É como se eu tivesse rompido uma veia, uma palavra seguia outra, colocava-se em seu lugar, surgiam as réplicas, em meu cérebro, eu gozava profundamente. Os pensamentos me vinham tão rapidamente e fluíam tão abundantemente que eu perdia uma porção de detalhes delicados, porque meu lápis não podia andar tão depressa, e entretanto eu me apressava, a mão sempre em movimento, eu não perdia um minuto. As frases continuavam a brotar em mim, eu estava prenhe de meu assunto”.

Apollinaire afirmava que os primeiros quadros de Chirico haviam sido pintados sob a influência de distúrbios cenestésicos (enxaquecas, cólicas).

  

Tão ocupado estava eu com Freud nessa época, e familiarizado com os seus métodos de exame que eu tivera alguma ocasião de praticar em doentes durante a guerra, que decidi obter de mim o que se procura obter deles, a saber, um monólogo de fluência tão rápida quanto possível sobre o qual o espírito crítico do sujeito não emita nenhum julgamento, que não seja, portanto, embaraçado com nenhuma reticência, e que seja tão exatamente quanto possível o pensamento falado. Parecia-me, ainda me parece – a maneira como me chegara a frase do homem seccionado o comprovava – que a velocidade do pensamento não é superior à da palavra e que ele não desafia forçadamente a língua, nem mesmo a caneta que corre. Foi com estas disposições que Philippe Soupault, a quem eu comunicara estas primeiras conclusões, e eu começamos a escrevinhar, pouco nos importando com o que pudesse suceder literariamente. A facilidade de realização fez o resto.

No fim do primeiro dia podíamos ler umas cinqüenta páginas obtidas por este meio, e começar a comparação de nossos resultados. No conjunto, os de Soupault e os meus mostravam notável analogia: mesmo vício de construção, falhas similares, mas também, de cada lado, a ilusão de um estro maravilhoso, muita emoção, escolha considerável de imagens de uma tal qualidade que não teríamos sido capazes de preparar uma só delas, mesmo com muito empenho, um pitoresco muito especial, e de um lado e de outro, alguma proposição de pungente burlesco. As únicas diferenças entre nossos dois textos me pareceram corresponder essencialmente a nossos temperamentos recíprocos, o de Soupault menos estático que o meu, e se ele me permite esta leve crítica, ao fato de Ter ele cometido o erro de distribuir, ao alto de certas páginas, e sem dúvida por espírito de mistificação, algumas palavras à guisa de títulos. Em compensação, devo-lhe a justiça de dizer que ele se opôs sempre, com toda energia, a qualquer retoque, à mínima correção ao curso de toda passagem desse gênero que me parecia até descabida. Tinha ele toda razão nisso. É com efeito muito difícil apreciar em seu justo valor os diversos elementos presentes, diga-se mesmo, é impossível apreciá-los numa primeira leitura. A vós que escreveis, estes elementos, na aparência, vos são tão estranhos quanto a outro qualquer, e naturalmente desconfiais. Falando poeticamente, eles se reconhecem sobretudo por um alto grau de absurdidade imediata, sendo o próprio desta absurdidade, num exame mais aprofundado, dar lugar a tudo que há de admissível, de legítimo no mundo: a divulgação de certo número de propriedades e de fatos não menos objetivos, em suma, que os outros.

Em homenagem a Guillaume Apollinaire, que morrera há pouco, e que por diversas vezes nos parecia ter obedecido a um arrebatamento desse gênero, sem entretanto ter aí sacrificado medíocres meios literários, Soupault e eu designamos com o nome de SURREALISMO o novo modo de expressão pura, agora à nossa disposição, e com o qual estávamos impacientes para beneficiar nossos amigos. Creio não ser mais necessário, hoje, repisar esta palavra, e que a acepção em que a tomamos acabou por prevalecer sobre a acepção apollinairiana. Ainda com maior razão poderíamos ter-nos apossado da palavra SUPERNATURALISMO, empregada por Gerard de Nerval na dedicatória de Filles de Feu. Com efeito, parece que Nerval possuiu às mil maravilhas o espírito ao qual recorremos, enquanto Apollinaire não possuía senão a letra, ainda imperfeita, do surrealismo, tendo sido incapaz de lhe traçar um esboço teórico que valha a pena. Eis duas frases de Nerval que acerca disso me parecem bem significativas:

 

Vou explicar-lhe, meu caro Dumas, o fenômeno que você citou acima. Como você sabe, há certos contistas que não podem inventar sem se identificarem aos personagens de sua imaginação. Você sabe com que convicção nosso velho amigo Nodier narrava como ele tivera a desgraça de ser guilhotinado na época da Revolução; ficava-se de tal modo persuadido que se ficava querendo saber como ele conseguira recolocar sua cabeça.

… E já que você teve a imprudência de citar um soneto composto neste estado de devaneio onírico SUPERNATURALISTA, como diriam os alemães, vai ouvi-los todos. Não são nada mais obscuros do que a metafísica de Hegel ou as MEMORÁVEIS de Swedenborg, e perderiam encanto se fossem explicados, se a coisa fosse possível, conceda-me ao menos o mérito da expressão… 

Só com muita fé poderiam nos contestar o direito de empregar a palavra SURREALISMO no sentido muito particular em que o entendemos, pois está claro que antes de nós esta palavra não obteve êxito. Defino-a pois uma vez por todas.

SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral.

ENCICL. Filos. O Surrealismo repousa sobre a crença na realidade superior de certas formas de associações desprezadas antes dele, na onipotência do sonho, no desempenho desinteressado do pensamento. Tende a demolir definitivamente todos os outros mecanismos psíquicos, e a se substituir a eles na resolução dos principais problemas da vida. Deram testemunho de SURREALISMO ABSOLUTO os srs. Aragon, Baron, Boiffard, Breton, Carrive, Crevel, Delteil, Desnos, Eluard, Gerard, Limbour, Malkine, Morise, Naville, Noll, Péret, Picon, Soupault, Vitrac.

Parece que são, até agora, os únicos, e não haveria engano, não fosse o caso apaixonante de Isidore Ducasse, sobre o qual me faltam elementos. E certamente, não considerando senão superficialmente seus resultados, bom número de poetas poderiam passar por surrealistas, a começar por Dante, e, em seus melhores dias, Shakespeare. No curso das diferentes tentativas de redução, em que empenhei, do que se chama, por abuso de confiança, o gênio, nada encontrei que se possa finalmente atribuir a outro processo que não seja este. 

As NOITES de Young são surrealistas do começo ao fim; infelizmente é um padre que fala, mau padre, sem dúvida, mas padre.

Swift é surrealista na maldade.

Sade é surrealista no sadismo.

Chateaubriand é surrealista no exotismo.

Constant é surrealista em política.

Hugo é surrealista quando não é tolo.

Desbordes-Valmore é surrealista em amor.

Bertrand é surrealista no passado.

Rabbe é surrealista na morte.

Poe é surrealista na aventura.

Baudelaire é surrealista na moral.

Rimbaud é surrealista na prática da vida e alhures.

Mallarmé é surrealista na confidência.

Jarry é surrealista no absinto.

Nouveau é surrealista no beijo.

Saint-Pol-Roux é surrealista no símbolo.

Fargue é surrealista na atmosfera.

Vaché é surrealista em mim.

Reverdy é surrealista em sua casa.

Saint-John Perse é surrealista a distância.

Roussel é surrealista na anedota.

Etc.

 

Insisto, eles nem sempre são surrealistas, neste sentido que descubro neles um certo número de idéias preconcebidas, às quais, bem ingenuamente, eles se apegavam. Apegavam porque ainda não tinham ouvido a voz surrealista, a que continua a pregar à véspera da morte e acima das tempestades, porque não queriam servir somente para orquestrar a maravilhosa partitura. Eram instrumentos soberbos demais, e por isso nem sempre produziram som harmonioso.

Nós, porém, que não nos dedicamos a nenhum trabalho de filtração, que nos fizemos em nossas obras os surdos receptáculos de tantos ecos, modestos aparelhos registradores que não se hipnotizam com o desenho traçado, talvez sirvamos uma causa mais nobre. Assim devolvemos com probidade o “talento” que nos atribuem. Falem-me do talento deste metro de platina, deste espelho, desta porta, e do céu, se quiserem.

Não temos talento, perguntem a Philippe Soupault:

“As manufaturas anatômicas e as habitações baratas destruindo as mais importantes cidades”.

A Roger Vitrac:

“Recém-invocara eu o mármore-almirante  (A Mesa de Mármore era um Tribunal instalado no Palácio de Justiça em Paris, realizando suas sessões numa imensa mesa de mármore, que lhe deu o nome; era de sua alçada o julgamento de militares, e sua jurisdição tinha três divisões: o almirantado, as florestas e águas, e a área do condestável) quando este virou nos calcanhares como um cavalo que se empina diante da estrela polar e me indicou no plano de seu chapéu bicorne uma região onde eu devia passar a minha vida”.

A Paul Eluard:

“Conto uma história bem conhecida, releio um poema célebre: estou apoiado a um muro, orelhas verdejantes, lábios calcinados”.

A Max Morise:

“O urso das cavernas e sua companhia que mia, o volante e seu valete no vento, o grão-chanceler com sua mulher, o espantalho e seu amigo alho, a fagulha com agulha, o carniceiro e seu irmão carnaval, o varredor com o seu tapa-olho, o Mississipi e seu sapo, o coral e o colar, o Milagre e seu santo por favor desapareçam da superfície do mar”.

A Joseph Delteil:

“Ai de mim! Creio na virtude das aves. E basta uma pena para me matar de rir!”.

A Louis Aragon:

“Durante uma interrupção da partida, quando os jogadores, reunidos, rodeavam a poncheira escaldante, perguntei à árvore se ainda tinha sua fita vermelha”.

A mim mesmo, que não pude me impedir de escrever as linhas serpentinas, alucinantes, deste prefácio.

Perguntem a Robert Desnos que, dentre nós, foi talvez quem mais se aproximou da verdade surrealista, aquele que, em obras ainda inéditas e ao longo de múltiplas experiências às quais prestou, justificou plenamente a esperança que eu depositava no surrealismo e me intima a esperar muito dele ainda. Hoje em dia Desnos fala surrealista à discrição. A prodigiosa agilidade de que ele dispõe para seguir oralmente seu pensamento nos vale, quanto nos apraz, discursos esplêndidos, e que se perdem, Desnos tendo mais que fazer do que fixa-los. Ele lê em si como em livro aberto, e nada faz para reter as folhas que se desvanecem no vento de sua vida.

Fontepesquisada:(http://www.culturabrasil.org/breton.htm)

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MYLENE FARMER – QI-VIDEO

 
 
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