Arquivo mensal: setembro 2007

PESSOA PLENA

 

 

Custa tanto ser uma pessoa plena,
que muito poucos são aqueles que têm a luz ou a coragem de pagar o preço…
É preciso abandonar por completo a busca da segurança e correr o risco de viver com os dois braços.

É preciso abraçar o mundo como um amante.
É preciso aceitar a dor como condição de existência.

É preciso cortejar a dúvida e a escuridão como preço do conhecimento.
É preciso ter uma vontade obstinada no conflito, mas também uma capacidade de aceitação total de cada conseqüência do viver e do morrer"

(Morris L. West) em "As Sandálias do Pescador"

 

 

POSTED BY SELETINOF AT 1:16 PM

 

O PROBLEMA CÉREBRO E MENTE

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Miguel R. Covian

Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto

Universidade de São Paulo

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Hipócrates (século V a.C.), considerado o pai da medicina, foi o primeiro a falar de ‘localização cerebral’: “Algumas pessoas dizem que o coração é o órgão com o qual pensamos, e que ele sente dor e ansiedade. Porém não é bem assim: os homens precisam saber que é do cérebro e somente do cérebro que se originam nossos prazeres, alegrias, risos e lágrimas. Por meio dele, fazemos quase tudo: pensamos, vemos, ouvimos e distinguimos o belo do feio, o bem do mal, o agradável do desagradável (…). O cérebro é mensageiro da consciência (…). O cérebro é o intérprete da consciência.”

As questões levantadas pelo problema cérebro/mente interessam a vários campos de estudo. À filosofia, do ponto de vista epistemológico (relativo ao processo do conhecimento) e ontológico (relativo à natureza do ser); à física teórica, por envolverem considerações sobre energia e materia; à teologia, pelas implicações de ordem espiritual que levantam; à neurofisiologia, à neurologia, à psiquiatria e à psicologia finalmente, porque dizem respeito ao cérebro e ao sistema nervoso. Portanto, o problema cérebro/mente tem, pelo menos, os enfoques científicos e filosófico. A ciência busca correlacionar fatos e processos que ocorrem simultaneamente no organismo, sobretudo no sistema nervoso central, quando um ato mental é realizado. A filosofia, por sua vez, tenta esclarecer lógica e epistemologicamente os conceitos por meio dos quais podemos formular e interpretar essas correlações. Há dificuldades. E enquanto não podemos dissecar a mente e guardá-la num frasco de formol, temos que trabalhar com analogias.

De acordo com a definição do pensador francês Henri Bergson (1859-1941), um ‘problema’ é a consciência de uma dificuldade para a qual se busca uma solução. A relação cérebro-mente (C/M) é um problema ainda não solucionado, embora date de muitos séculos. A partir da indagação ‘como a mente se relaciona com o cérebro?’ este problema vem sucintando hipóteses: serão o cérebro e a mente duas entidades interdependentes, intimamente relacionadas, ou tudo que é mental pode ser reduzido a processos cerebrais? a atividade neuronal do cérebro pode explicar tudo o que a mente realiza? existe a mente?

A tendência científica atual em relação a este problema admite que: (a) Os estados mentais não são independentes dos eventos cerebrais; (b) É preciso – e possível – tornar a mente acessível à ciência; ( c) O conjunto dos fenômenos mentais é um subconjunto dos fenômenos que acontecem num sistema nervoso plástico; (d) A mente não é supra-individual, isto é, não tem existência própria; (e) Um neurônio, um conjunto de neurônios ou uma área cortical não podem, isoladamente, perceber, sentir ou pensar: estas atividades resultam de uma ação interdependente de muitas partes do sistema nervoso central.

Na história da neurofisiologia, o conhecimento das modificações elétricas que acompanham a atividade do sistema nervoso antecedeu o conhecimento das alterações bioquímicas. Assim, numa primeira fase, estudaram-se o impulso nervoso, a sinapse, o condicionamento, o aprendizado e a memória. Depois veio o período bioquímico: o sueco Holger Hydén, com métodos bioquímicos, demonstrou que, durante o aprendizado, ocorre a síntese de proteínas cerebrais específicas. Demonstrou igualmente a existência da memória breve e da memória prolongada, bem como o papel desempenhado pelo RNA, pelo cálcio e pelos mecanismos genéticos que controlam a diferenciação proteica durante o aprendizado.   

 Quando um animal começa a aprender uma tarefa nova, aparece em poucos minutos uma proteína de vida breve. Esta síntese, aumentada, requer pelo menos duas proteínas específicas do cérebro. Animais-controle, que não aprendem, não produzem essas proteínas. O mesmo tipo de produção ocorre em áreas corticais, porém mais tarde. Também durante o aprendizado, pelo menos duas outras proteínas são sintetizadas na membrana das sinapses.

Tais pesquisas são importantes porque permitem um melhor entendimento de atividades como o aprendizado e a memória. É admisível suspeitar que nas atividades chamadas mentais também ocorram alterações bioquímicas semelhantes. Mas descobri-las resolverá o problema? É evidente que a atividade mental tem como condição necessária a atividade da maquinaria cerebral. Teremos porém o direito, em virtude de um princípio reducionista, de identificar a mente com o cérebro e reduzir o fenômeno mental ao fenômeno neuroquímico cerebral?

A dificuldade principal enfrentada pelo problema C/M consiste numa exlicação adequada para os estados mentais, como pensamentos, intenções, desejos e, sobretudo, para a capacidade de abstração, isto é, a formação de conceitos, que permite ao homem passar do particular para o geral. Todos os dados que recebemos do mundo externo são concretos, singulares, captados por um mecanismo, assim resumido, de forma esquemática: um receptor, específico para determinado estímulo (visual, auditivo, táctil), transmite o impulso nervoso que, por via também específica, chega a uma área cortical que, por sua vez, o recebe e processa, originando sensações visuais, auditivas, tácteis nas chamadas áreas primárias de projeção (figuras 1 e 2). A dificuldade é que não existem receptores especializados, nem áreas específicas no córtex cerebral, para os ‘estados mentais‘.

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Fig. 1. Esquema das estruturas que participam no mecanismo da sensação. R, receptor; T, tálamo; FR, formação reticular.

O número de neurônios (5010) tem sido relacionado ao desenvolvimento da mente no homem, cuja área cortical é de 3,5 vezes maior que a do orangotango, os lobos frontais ocupando um espaço 6,3 vezes maior. A observação do inglês Charles Sherrington, de que a mente está ligada à expansão do córtex cerebral, aprsenta-se modernamente com o nome de ‘índice de encefalização‘, que é a relação entre o tamanho do cérebro e a massa corporal. O homem possui o mais elevado índice de encefalização (30) de todos os animais, superando de muito o dos macacos (10). E é quase

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Fig. 2. Áreas originárias de projeção e áreas de associação no córtex cerebral do gato. A-I e A-II, áreas auditivas primárias; AE, área auditiva primária ectossylviana; ACS, área auditiva da parte anterior da circunvolução supra-sylviana; S-I, primeira área sensorial somática; S-H, segunda área sensorial somática; V-I e V-II, áreas visuais primárias; V-SS, área visual da circunvolução supra-sylviana; AASM, área de associação anterior da parte mediana da circunvolução supra-sylviana; ALA, área de associação lateral anterior; APC, área de associação pericrucial. (segundo Thompson, Johnson e Jones, 1963.) 

O peculiar e extraordinário desenvolvimento do cérebro humano tem sido estudado passo a passo por evolucionistas e antropólogos (figura 3). Quanto mais esse estudo avança, observamos que, na escala zoológica, a massa relativa do cérebro de um animal cresce em sua complexidade anatômica. Esta fato é mais claramente observável nas últimas etapas da evolução, aquelas que antecederam a aparição do homem. O comportamento consciente surge quando o cérebro atinge um nível elevado de estruturação e complexidade. O cérebro humano foi investigado minuciosamente dos pontos de vista anatômico, bioquímico e fisiológico, com as técnicas mais apuradas. No entanto, esses estudos não fizeram avançar o problema. É possível que toda essa informação, embora necessária, não seja suficiente para sua solução.

O próprio surgimento da vida é concebido de modo diferente por diferentes correntes filosóficas e científicas. Escutemos, por exemplo, Jacques Monod, que diz em seu livro O acaso e a necessidade: “A vida apareceu sobre a Terra. Qual a probabilidade de que isso já tivesse ocorrido antes? Não está excluída, face à estrutura atual da biosfera, a hipótese de que o acontecimento decisivo não tivesse ocorrido senão uma só vez. O que significa que sua probabilidade a priori seria quase nula. Esta idéia repugna a maior parte dos homens de ciência. Com um acontecimento único, a ciência nada pode dizer nem fazer”.

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Fig. 3. Diferenças de tamanho e complexidade morfológica dos cérebros de alguns vertebrados. Fica evidente um crescimento progressivo do volume cerebral, assim como o desdobramento da superfície do córtex cerebral, que atinge o máximo no cérebro humano.

É preciso realizar um ato de fé para aceitar essa possibilidade, já que a evolução, ao contrário de outras teorias científicas, se apóia na história e não se presta a nenhuma verifcação experimental. Mas também é preciso realizar um ato de fé para aceitar a teoria oposta, de que a vida foi criada, direta ou indiretamente. Monod foi coerente com seu ateísmo. 

Chardin, como religioso, não podia deixar de ser um evolucionista que aceita a existência de Deus como criador de tudo. Assim, ambas as teorias evolucionistas – a materialista e não materialista – exigem um ato de fé. Isso significa que a investigação biológica não é imune a interpretações filosóficas: ela se banha na filosofia, como o próprio homem.

Quando procuramos a raiz dessa polêmica, verificamos que o animismo primitivo já distinguia uma substância material e outra espiritual. Mas foi necessário chegar ao século XVII para se saudar a aparição de quatro notáveis filósofos cujas teorias sobre a inter-relação C/M ainda influenciam o mundo científico: o francês René descartes (1596-1650), propondo uma teoria dualista dessa interação, que se processaria em ambos os sentidos (o ser extenso, material, e o ser pensante, imaterial); o alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1647-1716), com sua teoria do paralelismo psicofísico, que admite uma harmonia preestabelecida entre cérebro e mente, ambos trabalhando como dois relógios acertados ao mesmo tempo e desde o início dos tempos, mas sem influência mútua; o judeu holandês Baruch Spinoza (1632-1677), responsável pela teoria identidade que, em termos modernos, afirma serem as atividades dos centros superiores cerebrais e os estados mentais uma e a mesma coisa, como faces de uma mesma moeda, ou como o mítico Janos, o deus de duas faces – isto é, duas maneiras de compreender uma mesma realidade; e finalmente o inglês Thomas Hobbes (1588-1679), materialista, para quem a ideia de uma substância incorpórea era insustentável, até mesmo absurda, e que deu origem a duas correntes modernas – o behaviourismo (ou comportamentismo), que nega a existência de fenômenos conscientes, e a teoria do estado central. 

Todas essas teorias podem ser divididas em dois grandes grupos: (1) as teorias monistas, que admitem a existência de um só elemento, seja ele material ou imaterial, e (2) as teorias dualistas, que admitem dois elementos, que podem ou não interagir.

Um dos mais renomados filósofos da ciência da atualidade, Karl Popper, afirma: “A matéria existe e este fato é crucialmente importante, mas também existem utras coisas que interagem com a matéria, como as mentes”. Para Popper, ao contrário do que admitem outros filósofos e cientistas, os estados mentais formam um mundo real, que interage com o nosso corpo. A teoria da existência de dois estados – físico e mental – e e suas possibilidades de interação e relacionamento é o que se conhece como interacionismo, sustentado por Popper e pelo neurofisiólogo John C. Eccles, contemplados com o prêmio Nobel e autores, em parceria, de THE SELF AND ITS BRAIN, que está se tornando um clássico da literatura científico-filosófica. Popper definiu a existência de três mundos:

Mundo 1 – É o universo das entidades físicas, dos estados físicos. No que diz respeito a seus constituintes físicos, compreende o mundo inorgânico, o ogânico, o biológico (incluindo o cérebro humano) e o mundo dos artefatos (ferramentas, máquinas, livros, obras de arte e música).

Mundo 2 – É o mundo das entidades mentais, dos estados de consciênia, disposições psicológicas e também dos estados de inconsciência. Cada indivíduo pode conhecer o seu, por experiência própria, e o dos demais indivíduos por inferência. Compreende nossas percepções, pensamentos, emoções memórias, sonhos, nossa imaginação criativa.

Mundo 3 – É o mundo dos produtos da mente humana, conhecimento em seu sentido objetivo, isto é, da herança cultural, que corresponde a uma longa lista de contribuições do esforço humano, conservada em livros, museus e outras formas de registro. Está integrado pela filosofia, teologia, ciência, história, literatura, arte, argumentação científica. Na sua composição material, como papel e tinta, os livros pertencem ao Mundo 1, mas como criação estão no Mundo 3, que pertence exclusivamente ao homem e é desconhecido para os animais.

Atualmente a ciência se vê desconcertada com respeito à interpretação dos acontecimentos neurofisiológicos que acompanham a mais simples atividade mental. Uma das tentativas de explicar esses fenômenos foi feita pelo físico-químico húngaro Michael Polanyi. Ele trata de explicar a relação C/M por analogia com a que existe entre dois níveis de alerta: focal (totalizante) e subsidiário (de detalhes). Por exmplo, quando olhamos uma cadeira e a apreendemos como um todo, estamos utilizando o nível de alerta focal; quando analisamos a madeira com que foi feita, o trabalho de marcenaria, utilizamos o alerta subsidiário.

Duas imagens estereoscópicas produzem isoladamente imagens subsidiárias; quando fundidas, produzem uma imagem ou visão focal. Esta fusão põe em evidência uma característica que não está presente nas figuras subsidiárias. Dela surge algo novo, assim como a mente surgiria da atividade cerebral. As partes subsidiárias funcionam como pistas que vão conduzir a uma totalidade chamada ‘visão esteroscópica’. A fusão não é o resultado de uma simples adição, mas de uma integração. As pistas são condições necessárias mas não suficientes para conhecer-se o objeto ou produzir-se a visão estereoscópica. O mesmo aconteceria, segundo concebe Polanyi, no caso da relação C/M; o cérebro é necessário para que surja a mente, mas não é suficiente para explicar o fenômeno em sua totalidade.

A atividade mental, no esquema do físico-químico húngaro, usa subsidiariamente o cérebro, e a relação C/M tem a mesma estrutura que a relação entre as partes (pistas) e sua integração (mente), para a qual as pistas se orientam. O alerta emitido por nossos órgãos dos sentidos, nervos, cérebro e do resto do corpo entra subsidiariamente em nossa atividade mental, que constitui o foco de nossa atenção. A partir das pistas que assim nos são proporcionadas, nos dirigimos ao conjunto focal, que é a mente. No entanto, quando começamos a prestar atenção focal às pistas – que assim perdem, por conseguinte, seu caráter de subsidiárias -, elas deixam de integrar o todo que é a mente. Da mesma forma que não encontramos o todo nas pistas, também não encontramos a mente em nosso corpo, em nosso cérebro, comprometido na atividade mental. Portanto, a mente não é a soma aritmética da atividade dos neurônios: é uma entidade diferente com suas próprias leis.

Outro conceito que nos ajuda a iluminar o problema deve-se a Polanyi também: é a teoria das condições limitantes (CL). Ele parte do seguinte raciocínio: para fazer uma máquina, produto exclusivamente humano, elaboro um plano, uma estrutura, e depois adapto as peças, orientando-as de acordo com esse plano, que constitui a CL (nível superior). As peças constituem o nível inferior, que por uma força externa se acomoda ao plano. De forma analógica, na evolução do sistema nervoso observa-se claramente que a aparição de uma nova estrutura limita as estruturas filogeneticamente mais antigas e lhes acrescenta algo novo (figura 4). Um exemplo típico dssa limitação é dado pelo animal hipotalâmico, do qual foram retiradas todas as estruturas situadas acima do hipotálamo, filogeneticamente mais recentes. Nesse animal, ao menor estímulo, desencadeia-se um quadro de ira (falsa ira), que cessa bruscamente ao cessar o estímulo. A eliminação daquelas estruturas, principalmente do córtex cerebral, foi uma condição limitante para a atividade hipotalâmica.

Da mesma forma, a teoria da CL admite que as formas elevadas de vida estão no vértice de uma hierarquia, cada nível desta apoiando-se, para seu trabalho, nos níveis precedentes mas não podendo ser explicado por eles, isto é, não podendo se reduzir a eles. Cada nível tem suas próprias leis e deixa em aberto a possibilidade de algo novo. Assim, a emissão da voz deixa aberta a possibilidade de combinarem-se os sons em palavras, que a gramática articula em frases. Porém as leis da gramática não se aplicam à produção da voz.

De acordo com essas ideias, a mente seria um nível que, para suas operações, utiliza o cérebro como nível precedente, mas que é irredutível aos princípios deste. Se aceitamos que na natureza os seres formam uma hierarquia, na qual cada novo nível representa uma etapa que controla a precedente, impondo-lhe uma CL mas sem ser reduzido a ela, a evolução ganha um significado novo e mais profundo: o de uma progressão estritamente definida e orientada da vida, que vai desde os níveis mais primitivos, inanimados, até os mais elevados e conscientes. Haveria então nessa progressão uma finalidade – antigamente denominada teleologia (doutrina das causas finais), termo substituído por ‘programa genético’ ou ‘teleonomia’. Isso quer dizer que os princípios mais elevados já estariam presentes, numa forma pré-embrionária, nos passos iniciais da evolução, inclusive a mente. Essa teoria foi sustentada simultânea mas independentemente por um pensador ocidental, o jesuíta Teilhard de Chardin, e um oriental, Sri Aurobindo.

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Fig. 4. Representação esquemática da hierarquia orgânica.

Ao examinarmos um nível evolutivamente mais recente, devemos ter em conta que ele afunda suas raízes no nível precedente, mas também dirige sua vista para o que vem depois (como as duas faces de Janos). Os diversos níveis interagem e cada um deles está aberto à influência direta daqueles entre os quais se interpôe, e por sua vez os influencia (o que lembra o interecionismo de Popper-Eccles). Nesta linha de pensamento, a mente aparece como um nível que se apóia no nível anterior – o cérebro -, ao qual controla, estabelecendo-lhe condições limitantes. Como as operações da mente se apóiam no nível corporal, elas podem ser modificadas por alterações adversas ou favoráveis ao corpo. Aldous Huxley, em seu livro AS PORTAS DA PERCEPÇÃO, oferece um bom exemplo deste fato.

Outro prêmio Nobel (1981), o norteamericano Roger W. Sperry, apresenta um novo conceito da relação C/M, que tem relação com as idéias de Polanyi, concebendo a mente como ‘emergente causal’. Para compreendê-la, lembramos a distinção feita pelo argentino Mario Bunge, sobre entidades resultantes e emergentes: uma entidade é resultante quando suas propriedades são possuídas também pelos seus componentes, ou seja, quando ela é o resultado de uma soma; é emergente quando possui propriedades não observadas em nenhum dos seus componentes. Assim, a capacidade de pensar é uma propriedade emergente no cérebro dos primatas, em relação a seus componentes neuronais. Emergência significa algo totalmente novo, com respeito aos elementos dos quais surge. 

Sperry dá o nome de mentalismo à sua teoria, que consiste em aceitar a emergência, na hierarquia cerebral, de um nível novo que atua segundo princípios e leis diferentes daqueles da neurofisiologia e não redutíveis a eles. Entre ambos os níveis há uma interação nos dois sentidos, que nem violenta a explicação científica, nem reduz a experiência mental a fenômenos neurofisiológicos, como postula a teoria da identidade. O mentalismo não aceita experiências conscientes que não estejam ligadas à função cerebral, mas admite a existência de fenômenos mentais subjetivos como realidades potentes e primárias, não redutíveis aos fenômenos físico-químicos.

Os níveis biológicos emergentes controlariam – ou seja, limitariam – aqueles evolutivamente mais antigos, incluindo a relação C/M. As atividades mentais emergentes exerceriam um controle causal sobre a atividade nervosa que opera nos níveis celular, molecular e atômico. A mente influenciaria a matéria cerebral e estabeleceria uma interação de duas entidades tão distintas como os estados mentais e os fenômenos fisiológicos, interação esta ue assim se torna compreensível m termos cientificamente aceitáveis: a mente teria um papel operacional e causal. Essa teoria considera a mente como uma entidade emergente, não a reduzindo, portanto, às realidades, físico-químicas; mas a coloca no cérebro, por conseguinte no campo da ciência objetiva e numa posição de comando, incorporada ao funcionamento cerebral.

Em resumo: a atividade mental, emergente, da atividade cerebral desempenha um papel importante, causal, no controle da função cerebral. Tanto isso é verdade que os yogas conseguem modificar seus batimentos cardíacos, a temperatura do corpo, o peristaltismo, o funcionamento dos intestinos e outros processos físicos por meio da concentração mental. Na década de 1960, a ciência admitiu discutir esse novo conceito de interação C/M. Hoje, amplos setores científicos aceitam a potência causal da mente sobre os eventos neurofisiológicos, aos quai pode controlar, como entidade emergente causal. Os fenômenos mentais, emergentes da atividade cerebral, exercem,por sua vez, um controle ativo nessa atividade. Uma vez gerados por processos neurofisiológicos, os processos mentais atuariam de acordo com suas próprias leis, diferentes das que regem a neurofisiologia e não redutíveis a ela.

As entidades mentais transcendem as neurofisiológicas, assim como estas transcendem o nível molecular, o atômico e o subatômico, sucessivamente. A forma de existência inferior se encontra assumida na forma de existência superior, que a compreende sem aniquilá-la. Leibniz disse muito sagazmente que “as coisas inferiores existem nas coisas superiores de um modo mais nobre que o delas mesmas”. A evolução inclui o problema C/M, já que ele está implícito na aparição de controles hierárquicos emergentes e limitantes. Ela foi complicando o mundo a ser estudado, em virtude do surgimento de novas entidades e fenômenos, com propriedades e forças originais reguladas por princípios e leis também novos. Caberá aos futuros cientistas descobrir e formular em suas respectivas disciplinas – como por exemplo o mundo das partículas subatômicas, o princípio da indeterminação de Heisenberg, a mecânica quântica – essas novas leis e esses novos princípios.

Aqueles que só aceitam a realidade do mundo físico admitem que a ciência ainda não pode explicar neurofisiologicamente o mecanismo do pensamento abstrato e das ideias universais. No entanto, afirmam que, como já tem acontecido com relação a outros fenômenos, dia virá em que ela desvendará o mistério destes fatos até agora incompreensíveis. Para os que acreditam numa realidade que transcende o mundo físico mas interage com ele, a expectativa é de descobrir a maquinaria neuronal que seria o seu instrumento, assim como a palavra o é para o sentido da frase. Ambas as posições são realistas, refletindo as filosofias que as sustentam.

Essas soluções não satisfazem plenamente, mas é evidente que elas tratam de responder a um desafio e constituem passos importantes para uma solução científica do problema C/M. Vernon Mountcastle, um dos mais eminentes neurofisiólogos atuais, afirmou: “As neurociências estão chegando a uma etapa em que o estudo das funções mais elevadas está se tornando possível”. Então encontraremos respostas para algumas perguntas que procuram uma solução científica, tais como: ‘de que forma a maquinaria cerebral extrai do ambiente e da atividade sensorial periférica, que oferecem fatos singulares, as generalizações universais? como surge o princípio da liberdade num sistema baseado no cérebro, que funciona como uma máquina regida por leis físico-químicas e, por conseguinte, com poucos graus de liberdade? como, do finito em que estamos imersos, o cérebro capta a noção de infinito? como esses dados limitados, singulares, específicos são manipulados pelo cérebro, amplificados e universalizados, permitindo conhecer realidades que o próprio ambiente não oferece? como a mente, entidade emergente do conjunto neuronal, organização nova do ponto de vista evolutivo, consegue elaborar esses dados? como o cérebro, órgão do pensamento, pode se pensar a si mesmo? como pôde Einstein – o cientista mais brilhante e original deste século -, cujo cérebro era semelhante a outros cérebros, elaborar sua teoria inovadora? Uma característica: ele era um homem livre de dogmatismos e tabus científicos que aprisionam a mente. Foi essa liberdade que lhe permitiu afirmar que “o espaço e o tempo são relativos” e que “é tão lógico viajar de amanhã a ontem quanto ir de Boston a Washington”.

Algumas destas questões soarão como ‘filosóficas‘. Mas a filosofia também é uma ciência.

Fontepesquisada: CIÊNCIAHOJE – Vol. 10, Nº 58, Outubro de 1989.

POSTED BY SELETINOF AT 2:04 PM

METAMORFOSE

        
 
 

A leitura da obra “Metamorfose”, de Franz Kafka é extremamente atual, em que pese ter sido escrita em 1912, contextualizada no momento histórico da crise da “Bélle Époque” que antecede a Primeira Guerra Mundial, Kafka está em meio a uma crise existencial, religiosa e racional, poderia ser chamada de crise da Modernidade.

Neste livro, fica evidente a desesperança do ser, o pessimismo com relação ao futuro, a falta de respostas às questões mais simples e às mais profundas. Enfim, “A Metamorfose” é uma obra agressiva, verídica, mordaz e, acima de tudo, de resgate de valores e princípios.

A metamorfose do caixeiro-viajante Gregor Samsa em um inseto nojento nos remete a uma série infindável de questionamentos.

Um primeiro pode ser a situação da solidão humana em sua plenitude, isto é, no íntimo indissolúvel, de nada adianta estar com alguém ou estar acompanhado, pois nosso passado e nossas experiências são únicos. E, perante o mundo e o todo somos um nada insignificante. Daí, talvez, a metamorfose tenha sido percebida por Gregor ao despertar pela manhã, imaginando-se ainda em um sonho que possivelmente somatizasse sua realidade.

Também se percebe a necessidade de isolamento, ou talvez de fuga, presente na situação, já que o protagonista sentia-se reconfortado em não mais ter compromissos com a família, o trabalho e a sociedade como um todo. Além disso, fica explícito certo prazer em não mais compactuar com pessoas e situações que abominava, ainda que transformado em uma barata. Parece uma forma de vingança surda e imunda.

Postamos o vídeo sobre Raul Seixas buscando ilustrar mais concretamente o texto de Renata Cristina B. Farina  mas claro que "raulzito" não foi nenhuma barata: mesmo enquadrando-se, sob certos aspectos, ao que é mostrado no texto de Renata Farina, Raul soube muito bem, ainda em vida, expressar toda sua indignação ante a sociedade de sua época e provocar sim uma revolução de valores. [1] 

Porém, essa situação metamórfica impede Gregor de expressar todos os seus sentimentos, toda a sua raiva e indignação, seja contra a família que o explorava, o patrão que o oprimia ou a sociedade em geral que o sufocava. Neste impedimento se estabelece uma relação de desumanidade real, já que o mundo impõe essas situações a todos nós.

Sem dúvida estamos diante de um ser absolutamente pobre de espírito e iniciativa, dominado pelo descaso consigo e o mundo. É um ser angustiado que não percebeu em sua angústia e agonia a possibilidade de mudança, mesmo que para isso houvesse sofrimento e dor. Preferiu a acomodação e o posterior rebaixamento à condição subumana ao invés de subtrair de seu passado, de filho dominado, de empregado subordinado, de sua condição de pequeno-burguês decadente, as condições necessárias para sua libertação.

 

Talvez o fato que ilumina mais fortemente a obra em seu aspecto psicológico seja o momento que o pai de Gregor tenta lhe matar atirando uma maçã. Aqui se presencia uma relação edipiana mal resolvida que, possivelmente, nos esclareça a formação e o caráter do protagonista enquanto angustiado, inativo perante as coisas do mundo, transformado em um inseto pelo pai opressor. Ora, quem o transformou em uma barata indefesa foi ele mesmo, que não reagiu e não assumiu a sua condição de sujeito, seja perante o pai, a irmã e os demais.

A morte de Gregor representa uma libertação para todos, principalmente para si, pois é esquecido; mas, por outro lado, a verdadeira transformação ocorrerá não com ele, mas com os outros: o pai do narrador sai da completa apatia para a atividade, a irmã sai da solidão para o convívio, a família ( pai, mãe e filha ) antes presa ao escuro do lar sai para o sol, para a vida, para um futuro que promete felicidade. Por mais que um sujeito imagine ser possível viver sozinho, mesmo que ele seja esquecido, seus atos produzirão efeitos nos outros. Essa transcendência do eu para o outro pode ganhar tanto sentido filosófico, religioso, psicológico.

Pensadores como Marx, Nietzsche, Heidegger e as descobertas de Freud do inconsciente dão uma resposta à objetividade e racionalidade extrema, pondo em cena a subjetividade. Para Marx, o que ultrapassava o sujeito e sua capacidade de conhecer era a própria história e o futuro, no qual tinha que se investir de imediato. A salvação e a transcendência eram uma questão de tempo. Uma geração investindo na salvação da próxima.

Esse sacrifício e transformação na própria carne para salvar o outro, mesmo que às vezes sem se dar conta disso, aparece de forma extrema na “Metamorfose”. Assim, podemos nos questionar sobre qual é o real valor do ser humano perante a sociedade e até mesmo perante os seus.

Sem desejar revolucionar, social ou cientificamente, os valores  atuais de nossa civilização, queremos, certamente, através de nossas publicações, participarmos de  toda e qualquer transformação pela qual esteja passando a humanidade. Dessa forma, o texto de Renata Farina, nos é muito oportuno no sentido de esclarecer, perante todos, nosso posicionamento ante o conhecimento científico-filosófico do homem. Como nosso inesquecível "raulzito", também aqui, de forma semelhante, eviteremos toda e qualquer inércia que venha paralizar, mobilizar ou engessar a realidade no momento exato de seu estudo… Ainda,  vamos dizer que desejamos contribuir, nem que seja só um pouquinho, para a "salvação" das próximas gerações: estabelecer o real valor do ser humano perante a sociedade é nosso objetivo maior. [2]

 

 

5 de março de 2007.

Renata Cristina B. Farina.

Estudante de Psicologia, Faculdade da Serra Gaúcha, RS.

 

[1]  Seletinof

[2] Seletinof

 

Fontepesquisada:

http://www.redepsi.com.br/portal/modules/smartsection/item.php?itemid=400

 

POSTED BY SELETINOF AT 0:05 PM

HOJE: ÚNICO DIA PRA SE VIVER!!

Só existem dois dias no ano que nada pode ser feito: Um se chama ONTEM e o outro AMANHÃ. Portanto, HOJE é o dia certo para AMAR, ACREDITAR, FAZER e, principalmente, VIVER.

Dalai Lama

POSTED BY SELETINOF AT 7:50 PM

CONEXÕES ENTRE PSIQUE E MATÉRIA – I

Física Quântica,
Psicologia profunda,
e Além.

 

 

Thomas J. McFarlane

(http://www.integralscience.org/tom/)

 

RESUMO: Iniciamos nosso estudo com uma revisão dos principais desenvolvimentos no mundo ocidental moderno, sobretudo, aqueles que dizem respeito às relações entre a psique e a matéria, com particular ênfase sobre certas tendências na psicología e na física no   início do século 20. Assim, discutimos aqui várias idéias sobre a conexão entre a psique e a matéria, principalmente aquelas relacionadas à profunda psicologia junguiana e à física quântica. Concluímos com algumas reflexões  que, como sugerem as idéias sobre a unidade da psique e matéria, tornam possível a elaboração de uma estrutura onde os reinos internos e externos à experiência se integram.

 

INTRODUÇÃO 

Se uma união se dá entre contrários como o espírito e a matéria, consciente e inconsciente, claro e escuro, e, assim, sucesivamente, se sucederá uma terceira coisa que não representa um vínculo mas algo novo. [1] – C. G. Jung. 

A visão moderna do mundo, na cultura ocidental, se caracteriza pela divisão implícita entre o reino objetivo ou físico da existência e o reino subjetivo ou psíquico da existência, com o reino objetivo ou físico geralmente dominando os reinos subjetivos ou psíquicos até o ponto de exclusão virtual – como na visão materialista do mundo que considera a mente como um mero epifenômeno da matéria. A dominação do materialismo moderno é principalmente devida a sua associação com o poder teórico e prático notavelmente da física clássica, como desenvolvida por Newton e seus sucessores. Segundo este modelo, a realidade consiste de um espaço fixo e passivo que contém partículas materiais localizadas cujo movimento no tempo é deterministicamente governado por leis matemáticas. Por conseguinte, os fenômenos mentais, neste quadro, sâo nada mais que funções complexas do cérebro material governadas pelas leis físicas. 

 

Ainda que o materialismo científico tenha proporcionado a visão dominante do mundo na cultura ocidental moderna, não ocorreu a exclusão total de outras alternativas. Não obstante, estas alternativas, fundamentalmente, não obtiveram sucesso desafiando a dominação do materialismo. Entretanto, este desafio começara já dentro da própria ciência empírica e de forma bem intensa. No século 20, a moderna visão materialista do mundo, começa a complicar-se ante os desenvolvimentos científicos, particularmente aqueles dados na física. Na física, o desenvolvimento da relatividade e da teoria quântica, servirá para minar radicalmente várias acertivas fundamentais na base do modelo materialista. Por exemplo, as teorías especial e geral da relatividade obrigaram os físicos a revisarem suas concepções básicas de espaço, tempo, movimento, gravitação, matéria, energia, e a natureza do cosmos como um todo. A teoria quântica, por outro lado, forçava uma revisão dos conceitos de causalidade, determinismo, e localidade. Talvez, mais pretenciosamente, desafiara a veracidade da idéia de que as propriedades da matéria tenham uma existência objetiva independentemente da observação. Como resultado  da física do século 20, com a base do materialismo minado, sugeriram alguns pensadores que a psique podia ser relacionada de alguma maneira misteriosa com a determinação das propriedades observadas da matéria. 

Entretanto, os desenvolvimentos na psicologia, ao longo do século 20, introduziram explicitamente a psique no domínio do questionamento científico. Em particular, a teoría psicanalítica de Freud demonstrou a realidade do inconsciente psicológico, uma realidade psíquica inobservável que contém impulsos e desejos pessoais reprimidos. Estes conteúdos psíquicos ocultos exerceriam sua influência na conciência e assim podendo-se conhecê-los indiretamente através de um estudo de vários conteúdos conscientes, como nossos sonhos. Ainda que, inicialmente, o conceito de inconsciente psicológico não desafie o materialismo, o descobrimento das profundezas do transpessoal do inconsciente por Jung (quer dizer, a coletividade dos arquétipos inconscientes e psicológicos) pressupõe uma realidade psíquica que era difícil de se reconciliar com qualquer entendimento estritamente materialista da natureza humana. No mais, o trabalho mais tarde de Jung com o fenômeno de sincronicidade proporcionou a evidência de que as regiões mais profundas do inconsciente (ou seja, o unus mundus) consistem de estruturas do "psicóide" que transcendem completamente a distinção entre a psique e a matéria. 

Sobre os desenvolvimentos no século 20, a física e a psicologia possuem implicações análogas: assim como a psicologia revelou nas regiões mais profundas da psique uma conexão muito estreita com a matéria, a física revelou, também, nas profundezas da matéria, uma conexão profunda com a psique. Ainda que a natureza precise destas conexões remanescentes, fugidias e controvérsas, a possibilidade provocativa de transcender o dualismo mente e matéria há mantido a motivação para o desenvolvimento de uma mais compreensiva e unificadora visão do mundo. Como Jung, psicólogo, Marie-Louise von Franz disse, 

Os paralelismos inesperados de idéas na psicología e na física sugerem, como Jung mostrou, uma última possibilidade de unidade de ambos os campos de realidade que a física e a psicologia estudam… O conceito de uma idéia unitária da realidade (que foi seguido por Pauli e Erich Neumann) Jung chamou de unus mundus (o único mundo, dentro do qual a matéria e a psique ainda não estão discriminadas ou  atualizadas  separadamente). [2]

 

O resto deste documento explorará em mais detalhes alguns destes desenvolvimentos dados no século 20, com ênfase particular na psicologia profunda e na física quântica. Pois este documento não pressupõe a familiaridade com a física quântica ou com a psicología profunda – uma exposição breve de alguns conceitos básicos nestas duas áreas de investigação precederá a discussão de suas conexões.

 

 

FÍSICA QUÂNTICA

Os conceitos científicos existentes sempre cobrem somente uma parte muito limitada da realidade, e a outra parte que não se entende, todavía, é infinita. Sempre que procedemos do conhecido ao desconhecido, podemos esperar que entendamos, porém, podemos ter que aprender um novo significado da palavra ao mesmo tempo que "entendemos". [3] – Werner Heisenberg. 

Se descobriram as leis fundamentais da física quântica, independientemente, em 1925 por Werner Heisenberg e em 1926 por Erwin Schrödinger como resposta à evidência experimental que contradiz os conceitos fundamentais da física clássica. Por exemplo, elétrons (que se pensava previamente que eram partículas) foi encontrado exibindo propriedades de ondas. Reciprocamente, luz (que se pensava previamente que eram ondas) foi encontrada exibindo propiedades de partículas. Esta confusão de distinções clássicas entre as partículas e ondas foi resolvida pelo princípio de Niels Bohr da complementaridade,  o qual estabelece que partícula e onda são conceitos mutuamente exclusivos, porém, ambos necessários para uma completa descrição dos fenômenos quânticos. 

 

Uma consequência desta dualidade onda-partícula é que toda matéria possui natureza ondulatória, e não se pode dizer que tal tenha uma posição localizada definida a todo momento. Ainda, em virtude de suas propriedades não-locais de onda, pares de partículas separadas espacialmente exibem, às vezes, correlações não-locais em seus atributos. Outra conseqüência da dualidade onda-partícula é a correspondente  dualidade entre o não-observável e o observável. Esta dualidade gera perguntas enigmáticas com respeito a natureza da medida na mecânica quântica: como é que uma onda transforma-se de repente numa partícula, e como esta transformação súbita se relaciona com a observação?

    

Um entendimento mais profundo destes problemas requer algum conhecimento básico de como a física quântica descreve os fenômenos. Segundo a física quântica, o estado de um quantum  não-observado de matéria ou luz (como um elétron ou fóton) se representa por uma solução da equação de onda de Schrödinger. Esta solução é uma função quântica de onda

y(x), cuja intensidade |y(x)|2, em qualquer posição particular x, representa a probabilidade de observar o quantum nessa posição. Quando se observa o quantum, porém, ele é visto como tendo uma posição atual definida, e a função de onda não consegue mais descrever apropriadamente o quantum por muito tempo. Assim, quando o quantum é não-observável, tal se define como uma onda não-local de posições prováveis; e quando o quantum é observável, tal se define como uma partícula que tem uma posição localizada definida. Como resultado, se exige que os conceitos de partícula e de onda sejam requeridos para caracterizar o  quantum completamente: o conceito de partícula é requerido para descrever o comportamento do quantum quando observável, enquanto o conceito de onda é requerido para descrever  o comportamento do quantum quando não-observável. O conceito de partícula e onda são chamados descrições "complementares" porque ambas são necessárias para caracterizar os aspectos do observável e não-observável de qualquer sistema quântico, como ilustrado na tabela seguinte:

 

 

Ainda que a observação seja evidentemente necessária para conduzir a transição do possível ao atual, a natureza fundamental da observação na teoria quântica permanece algo misteriosa. Este problema de medida deriva do fato de que antes da observação o quantum é descrito como sendo uma onda não-local de probabilidade, expandida ao longo do espaço, embora que depois da observação somente um dos valores possíveis seja atualizado. Assim, a observação envolve um descontínuo “colápso” (também chamado “projeção”) da função quântica de onda de um contínuo de possibilidades para um único valor atualizado. Esta projeção, entretanto, é um elemento ad hoc do formalismo, e não é uma transformação legal que se governa pela equação de onda de Schrödinger. Não há nenhuma explicação para como, quando, ou onde esta projeção misteriosa ocorre. E mais, quando a projeção tem lugar, as leis da física quântica não predizem qual dos possíveis valores se atualizará em qualquer observação dada, portanto, se viola o determinismo clássico e se introduz um elemento de acausalidade e espontaneidade na teoría a um nível fundamental. 

Numa análise fundamental do processo quântico  de medida, John von Neumann argumentava que a consciência é requerida para explicar a projeção (colápso) da função de onda quando da passagem da posibilidade para a atualidade. Em particular, ele raciocinou que, porque toda interação física é governada pela equação de onda de Schrödinger, a projeção que está associada com a observação deve atribuir-se a uma conciência não-física que não se governa pela lei física. Segundo von Neumann, esta atividade da consciência somente serve para causar a projeção, e não seleciona ou influencia no valor particular atualizado. Existe uma espontaneidade assim inerente na projeção que tem lugar na transição do não-observável para o observável.

 

A PSICOLOGIA JUNGUIANA  

Desde que as estrelas hão caído do céu e nossos símbolos mais altos jaz palidecidos, uma vida secreta baila no inconsciente. … Nosso inconsciente… esconde água vivente, espírito que se tornou natureza, e por isto se perturba. O céu se tornou para nós o espaço cósmico dos físicos, e o supremo divino uma memória justa de coisas passadas. Mas "o coração arde", e uma inquietude secreta roe as raízes de nosso ser. [4] – C. G. Jung

 
A noção do inconsciente psicológico foi desenvolvido primeiro extensivamente por Freud em seus livros A Interpretação dos Sonhos, publicado em 1900, e mais tarde em Três Ensaios na Teoria da Sexualidade, publicado em 1905. Além dos conteúdos de nossa consciência consciente, Freud considerou que a psique também continha uma região inconsciente cuja conteúdos são escondidos e não podem ser observados diretamente. Estes conteúdos inconscientes, de acordo com Freud, consistem em conteúdos previamente conscientes que foram reprimidos e esquecidos. O inconsciente é assim um tipo de "armário esquelético" contendo conteúdos psicológicos pessoais que estavam consciente no passado mas que no presente encontram-se escondidos muito profundamente na psique. Embora não possam ser mais diretamente observáveis, estes conteúdos inconscientes podem ser conhecidos indiretamente pelos seus efeitos na consciência, como, por exemplo, a influência deles em nossos sonhos. Na concepção de Freud, o inconsciente contém só conteúdos psíquicos pessoais que estavam previamente conscientes, mas que foram reprimidos tipicamente durante infância.

Depois de estudar com Freud, Carl Jung aprofundou e ampliou a noção de Freud do inconsciente, notavelmente na sua Psicologia do Inconsciente, publicada em 1912, e em seu Arquétipos do Inconsciente Coletivo, publicado em 1934. De acordo com Jung, o inconsciente contém, além de conteúdos pessoais reprimidos, uma região funda e vasta de conteúdos psíquicos coletivos, chamou o inconsciente coletivo. Em contraste com os conteúdos inconscientes pessoais que estavam previamente conscientes, os conteúdos inconscientes coletivos não derivam de conteúdos pessoais previamente conscientes. Ao invés, os conteúdos coletivos são inatos e universais. Nas palavras de Jung,

  

  

Nós temos que distinguir entre um inconsciente pessoal e um inconsciente impessoal ou transpessoal. Também falamos do último como inconsciente coletivo, porque está isolado de algo pessoal e é comum a todos os homens, que não é naturalmente o caso dos conteúdos pessoais. [5]

Embora o inconciente coletivo esteja presente nas profundezas de cada psique individual, não é subjetivo no sentido de ser diferente de pessoa para pessoa. Porque o inconciente coletivo é comum a todos os indivíduos, é objetivo no sentido de que todos os indivíduos compartilham estas mesmas estruturas psíquicas profundas. Como escreve o Jung,

Os estados inconscientes coletivos para a psique objetiva, o pessoal inconsciente para a psique subjetiva. [6]

Em resumo, a porta para o inconsciente não abre um armário esquelético, como propôs Freud, mas abre um mundo maior para além dos limites da psique consciente.

É importante notar que entre as regiões pessoais e coletivas da psique há vários níveis intermediários de profundidade, cada um com sua porção de universalidade e particularidade. Jung explica:

Visto que existem tanto diferenciações conforme a raça, tribo, e até mesmo a família, há também uma psique coletiva limitada à raça, tribo, e família além da psique coletiva "universal". [7]    

 

Em outros termos, o inconsciente não é dividido em regiões pessoais e coletivas distintas, mas sim um contínuo de conteúdos pessoais e universais a cada extremo. A contribuição mais importante de Jung e seu interesse primário, porém, estão nas regiões mais profundas do inconciente coletivo, cuja estruturas Jung chama arquétipos. Gosta das Idéias de Platão, os arquétipos do inconsciente coletivo são padrões universais que formam nossa experiência do mundo e lhes proporcionam elementos comuns. Seguindo Kant, porém, Jung considera os arquétipos como estruturas epistemológicas em lugar de entidades ontológicas independentes:

O inconciente coletivo, sendo o repositório da experiência do homem e ao mesmo tempo a condição anterior desta experiência, é uma imagem do mundo que levou uma eternidade para se formar. Nesta imagem, certas características, os arquétipos ou dominantes, cristalizaram-se completamente com o passar do tempo. [8] 

 

Segundo a concepção de Jung do inconsciente coletivo, as estruturas arquetípicas não são fixas, mas dinâmicas. Os arquétipos não só evoluem com o passar do tempo, mas também têm atividade dinâmica e criativa no presente. Além disso, esta atividade não é meramente uma reação às atividades de consciência, mas é inerente ao próprio inconsciente. Como explica Jung,  

Se [o inconsciente] fosse meramente uma reação à mente consciente, poderíamos chamá-lo, oportunamente, de espelho psíquico do mundo. Nesse caso, a real fonte de todos os conteúdos e atividades estaria na mente consciente, e não haveria absolutamente nada no inconsciente, exceto as reflexões torcidas de conteúdos conscientes. O processo criativo seria calado na mente consciente, e qualquer coisa nova nada mais sería que invenção consciente ou inteligência. Os fatos empíricos desmentem isto. Cada homem criativo sabe que a espontaneidade é a essência maior do pensamento criativo. Porque o inconsciente não é só uma reflexão de espelho reativo, mas uma atividade independente, produtiva, seu reino de experiência é um mundo auto-suficiente, tendo sua própria realidade a qual só podemos dizer que nos afeta quando à afetamos – precisamente o que nós falamos sobre nossa experiência do mundo exterior. E assim como os objetos materiais são os elementos constituintes deste mundo, somente os fatores psíquicos constituem os objetos daquele outro mundo. [9]

 
O mundo psíquico objetivo, ou inconciente coletivo, é assim semelhante ao mundo físico objetivo, tendo, ambos os mundos, estruturas objetivas e atividades autônomas independentes de nosso testamento pessoal. Por exemplo, da mesma maneira que o mundo físico objetivo serve como ímpeto criativo para o desenvolvimento de nossa visão científica do mundo, a psique desenvolve e evolui porque a psique objetiva não contém apenas conteúdos conscientes, mas tem uma atividade autônoma que é relativamente independente de nossa consciência pessoal. Porque esta atividade do inconsciente é relativamente autônoma, manifesta freqüentemente uma compensação ou correção às nossas visões conscientes ou convicções. O resultado é uma evolução da psique para inteireza e integração, um processo que Jung chamou "individuação".   

Numa compensação inconsciente,  alguns conteúdos inconscientes são espontaneamente expressados ou manifestados na consciência, como num sonho,  e proporciona uma oportunidade à psique de integrar o conteúdo inconsciente na conciência. Um dos tipos mais interessantes e dramáticos de compensação inconsciente é o fenômeno que Jung chama sincronicidade. Sincronicidade é necessariamente significante no sentido em que é uma forma de compensação inconsciente que serve para acelerar o processo de individuação. É distinto de outras formas de compensação inconsciente pelo fato que a sincronicidade envolve uma conexão entre experiência psicológica interna e experiências exteriores no mundo onde a conexão é acausal no sentido de que a experiência interna não pode ter sido uma causa eficiente da experiência exterior, ou vice-versa. Em resumo, sincronicidade é um significante, conexão acausal entre eventos internos e externos. Porque o fenômeno de sincronicidade envolve uma coordenação acausal dos mundos interiores e exteriores, de um modo significante, não é exclusivamente um fenômeno psicológico ou físico, porém é um "psicóide" o qual significa  que envolve psique e matéria de alguma maneira essencial. Assim, Jung tornou claro o conceito de sincronicidade para insinuar a existência de um nível extremamente profundo de realidade antes de qualquer distinção entre psique e matéria. Em outras palavras, os fenômenos de sincronicidade representam uma manifestação na consciência de estruturas do psicóide, presente nas profundezas de uma realidade unitária transcendental o que Jung chamou de unus mundus:

Desde que psique e matéria estejam contidos em um e mesmo mundo, há portanto um contínuo contato  de um com o outro, mas o que resta dessa interação progressiva é irrepresentável , são fatores transcendentais, isto não só é possível mas bastante provável, podendo afirmarmos,  que a psique e matéria são dois aspectos diferentes de uma e mesma coisa. [10]

O unus mundus também está implícito no fato de que nós ocupamos evidentemente uma realidade que contém a psique e a matéria, e que estes dois domínios de realidade não são absolutamente independentes e isolados, mas interagem entre si. Como diz o Jung,

Psique e matéria existem em um e mesmo mundo, e cada um partilha do outro, de outro modo qualquer ação recíproca seria impossível. Se a pesquisa sozinha pudesse avançar o mais longe possível, por conseguinte, nós chegaríamos a um último acordo entre conceitos físicos e psicológicos. [11]

O conceito de Jung do unus mundus, então, não só mostra como a matéria é implicada nas profundezas da psique, mas também provê uma armadura para integrar nossa compreensão da psique e matéria. Nesta armação, ambos os mundos objetivos, físicos e psíquicos, estão arraigados em uma unidade comum nas profundezas da realidade. Porque o uno mundus é normalmente inconsciente, é experimentado como o misterioso Outro,  isto é, o contexto inadvertidamente infinito de nossa experiência consciente finita. Visto em seu aspecto subjetivo, o unus mundus unifica a realidade assumindo a forma de um domínio psíquico contendo arquétipos psicológicos que manifestam-se em nossa experiência  interna. Visto em seu aspecto objetivo, o uno mundus assume a forma de um domínio físico contendo leis arquetípicas da natureza que governam manifestações em nossa experiência exterior. Se psique e matéria são, como isto sugere, uma única realidade vista de perspectivas diferentes, então uma comparação de seus elementos comuns, como revelado na física e na psicologia, pode proporcionar uma visão, na natureza, de uma realidade em seu nível mais profundo e mais universal.

Fontepesquisada: http://www.integralscience.org/psyche-physis.html

Traduzido por Rogério Fonteles Castro (Graduado em Física pela Universidade Federal do Ceará) 

 

 

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O PORTADOR

 

 

Antônio Cândido de Mello e Souza

(http://www.pocos-net.com.br/Noticia.asp?id=4634)

 

O pensamento de Nietzsche chegou muito cedo ao Brasil, por vias diretas e tortas. Mas foi em 1946, quando a difamação de Nietzsche estava em seu apogeu, especialmente nos meios de esquerda, que se levantou uma primeira voz em sua defesa (ou melhor, em defesa dos que estavam ameaçados de perder, por preconceito, o "presente feito à humanidade" com sua obra): era um jovem crítico literário de São Paulo, preocupado, já então, com a necessidade de "recuperarmos Nietzsche". Hoje todos sabem quem é Antônio Cândido. Mas poucos da nova geração tiveram oportunidade de conhecer esse ensaio, publicado pela primeira vez no rodapé semanal do Diário de São Paulo ("Notas de Crítica Literária"), e incluído mais tarde no Observador Literário (Comissão Estadual de Cultura, 1959), livro atualmente mais que esgotado. Hoje, que ao menos em parte o preconceito se desfez e o trabalho filológico está trazendo a obra à sua verdadeira luz, nada mais oportuno, depois da aventura através dos textos, do que reter esse estudo e reconhecer a justeza, a coragem da lucidez, sempre possível, mesmo em épocas traumatizadas. Por essa razão, com especial consentimento do autor, esse dito ensaio é reeditado aqui, em apêndice a estas "obras imcompletas" de Nietzsche. (Rubens Rodrigues Torres Filho)   

É preciso afastar, em relação a pensadores como Nietzche, o conceito de guerra – propagandístico ou ingênuo  -, que o encara como uma espécie de Rosenberg mais fino e procura ver no seu pensamento o precursor do nazismo. Esse antipangermanista convicto deve ser considerado o que realmente é: um dos maiores inspiradores do mundo moderno, cuja lição, longe de exaurida, pode servir de guia a muitos problemas do humanismo contemporâneo.          

Mesmo rejeitando o conteúdo das suas idéias, devemos reter e ponderar a sua técnica de pensamento, como propedêutica à superação das condições individuais. “O homem é um ente que deve ser ultrapassado”, disse ele; e o que propõe é ultrapassar incessantemente o ser de conjuntura, que somos num dado momento, a fim de buscar estados mais completos de humanização. Talvez pudêssemos indicar os rumos da sua propedêutica, dizendo que visa a uma expansão mais completa das energias de que somos portadores, e nesse sentido é elucidativa a preocupação de ascese, de exercício preparatório, que atravessa toda a sua obra. Por isso invoca ou sugere uma certa dureza e a abolição da autocomplacência: ver duro e cru, em si e nos outros, para ser capaz de ver justo e bom, posto que justiça e bondade repousam sobre a energia com que superamos as injunções, as normas cristalizadas, tudo enfim que tende a imobilizar o ser em posições já atingidas e esvaziadas de conteúdo vivo. O que é tacitamente aceito por nós; o que recebemos e praticamos sem atritos internos e externos, sem ter sido por nós conquistado, mas recebido de fora para dentro, é como algo que nos foi dado; são dados que incorporamos à rotina, reverenciamos passivamente e se tornam peias ao desenvolvimento pessoal e coletivo. Ora, para que certos princípios, como a justiça e a bondade, possam atuar e enriquecer, é preciso que surjam como algo que obtivemos ativamente a partir da superação dos dados. "Obtém a ti mesmo" – é o conselho nietzschiano que o velho Egeu dá ao filho, no Teseu, de Gide. Para essa conquista das mais lídimas virtualidades do ser é que Nietzsche ensina a combater a complacência, a morbidão das posições adquiridas, que o comodismo intitula moral, ou outra coisa bem soante. Na sua concepção há uma luta permanente entre a vida que se afirma e a que vegeta; parecia-lhe que esta era acoroçoada pelos valores rotinizados da civilização cristã e burguesa.

Realmente, se submetermos a análise rigorosa a maneira por que damos abrigo aos valores espirituais, veremos que em nossa atitude há mais de comodismo e flacidez moral do que propriamente crença ativa e fecundante. Aceitamos por via de integração, participação submissa no grupo, tendendo a transformar os gestos em simples repetição automática. Fazemo-lo para evitar as aventuras da personalidade, as grandes cartadas da vida, julgando pôr em prática valores conquistados por nós mesmos. Ora, a obra de Nietzsche nos pretende sacudir, arrancar deste torpor, mostrando as maneiras pelas quais negamos cada vez mais a nossa humanidade, submetendo-nos em vez de nos afirmarmos. Encarada assim, a exaltação do homem vital e sem preconceitos vale, de um lado, como retificação do humanitarismo freqüentemente ingênuo do século XIX: de outro, como reivindicação da complexidade do homem, contra certas versões racionalistas e simplificadoras.

Com efeito, ele afirma longamente em sua obra (de modo quase sistemático na primeira parte de Além de Bem e de Mal, por exemplo) que o homem é mais complexo do que supõem as normas e convenções. Bem antes das modernas correntes da psicologia, analisou a força e importância dos impulsos de domínio e submissão, concluindo que há em nós um animal solto que também compõe a personalidade e influi na conduta. Naquela obra, insiste sobre a presença no tecido da vida humana, dessas componentes, que a moral e a convenção procuram eliminar, depois de as haverem condenado.

A sua teoria da consciência como superfície, afloramento de obscuridades que não se pressentem, anuncia a psicanálise, como podemos ver nas longas exposições da Vontade de Potência. Sob este ângulo, e apesar do desvirtuamento da expressão, o super-homem aparece como tipo superiormente humano – um ente que consegue manifestar certas forças de vida, mutiladas em outros por causa da noção parcial que a psicologia e a moral convencionais oferecem de nós. Em meio à hipocrisia, à debilidade da consciência na burgueia européia do fim do século XIX; ao humanitarismo manhoso com que procurava adormecer o sentimento de culpa, Nietzsche assume por vezes uma estatura de justiceiro. E um exemplo da ironia que espreita na posteridade as idéias dos filósofos é o fato de muitas dessas virtudes de dureza propedêutica terem sido encarnadas, no século XX, por uma raça de homens que ele sempre considerou progênie de escravos. Na elite revolucionária que implantou o socialismo na Rússia, encontravam-se, como a realização impressionante duma profecia, as qualidades de implacável retidão que atribui, em Vontade de Potência, ao "Legislador do Futuro" – que poda sem dó a fim de favorecer a expansão plena, e cuja dureza aparente é, no fundo, amor construtivo pelos homens.

Nele, porém, esta atitude só adquire significado reposta no conjunto da obra – naquela mistura, tão sua, de fervor e irreverência, destruição raivosa e júbilo construtivo, que é a única possibilidade do nosso tempo e ele anteviu como profeta. Para a opinião dominante, a sua crítica violenta fez dele um personagem incômodo, ante o qual se fecham as portas da cidade, como as que, na parábola final de Humano, Demasiado Humano, rejeitam o peregrino para a noite do deserto. Ele vinha romper uma série de hábitos tacitamente aceitos, e mostrar que a própria filosofia não dava mais conta das obrigações para com a vida.

Talvez se possa dizer, com efeito, que, a partir do século XVII e até o nosso, ela cuidou mais da natureza do espírito e das condições do seu funcionamento, que do seu caráter de aspecto da atividade humana total. Doutro lado, analisou de preferência tudo que condiciona o comportamento e dele resulta; raras vezes desceu às suas raízes vivas. Semelhante tarefa coube não raro à arte, cuja importância como forma de conhecimento não decresceu no mundo moderno, como se poderia pensar à primeira vista. A acuidade psicológica, por exemplo, não se confunde com a competência dos especialistas, e deve ser buscada menos neles do que em obras como as de Dostoiévski, Proust, Pirandello ou Kafka; e não é de estranhar que o maior psicólogo do nosso tempo, Freud, seja uma espécie de ponte entre o mundo da arte e o da ciência; entre os processos positivos de análise e a intuição estética.

Nietzsche se situa no universo dos psicólogos artistas, e daí decorre o significado central da sua obra. Enquanto algumas e por muitos lados melhores tendências do pensamento oitocentista procuravam resolver o problema da vida em sociedade criticando as condições de existência, ele tentou atingir diretamente o núcleo da personalidade. Se Marx ensaiava transmudar os valores sociais no que têm de coletivo, ele ensaiou uma transmutação do ângulo psicológico – do homem tomado como unidade duma espécie, pela qual é decisivamente marcado, sem desconhecer, é claro, todo o equipamento de civilização que intervém no processo. São atitudes que se completam, pois não basta rejeitar a herança burguesa no nível da produção e das ideologias; é preciso pesquisar o subsolo pessoal do homem moderno tomado como indivíduo, revolvendo as convenções que a ele se incorporam, e sobre as quais assenta a sua mentalidade.

Daí a conseqüente transmutação dos valoes morais. Discípulo dos grandes analistas franceses, apaixanado de Stendhal e Dostoiévsk, dando uma sentença de Pascal por toda a metafísica alemã, continua os grandes investigadores da conduta, concebida como arte. O seu objetivo é lançar as bases de uma nova ética, acessível aos homens "que se obtém" – homens superiores que alargarão até os outros aquilo que conquistaram penosamente, cauterizando em si a herança de uma civilização desvirtuada. "É certo que todos nós temos laços e afinidades que nos ligam ao santo, assim como um parentesco espiritual nos vincula ao filósofo e ao artista" – diz numa das Considerações Extemporânes. Em conseqüência, todo progresso no sentido da realização do super-homem significa riqueza coletiva, na medida em que atuam essas afinidades secretas que, ligando-o a todos, a todos enriquecem pela comunicação da seiva. 

         

Para favorecer o aparecimento dos homens superiores, é preciso alterar o modo de encarar a vida e o conhecimento. O ideal nietzschiano seria o pensador que passeia livremente pela vida e recusa considerar a atividade criadora uma obrigação intelectual; o homem que, para fecundar a si e aos outros, suprime o hiato existente as mais das vezes entre conhecer e viver.

No belo trecho final de Irreligião do Futuro, Guyau chama ao filósofo – amigo do descohecimento: cet ami de l’inconnu. Ele é, com efeito, irmão do aventureiro,  e não deve renegar o parentesco vivificante. Enquanto um se desapega da estabilidade e da rotina para obter em torno de si a mudança permanente das pessoas, lugares ou situações – outro opera de maneira semelhante no terreno do espírito, jogando fora convicções, crenças, noções, para obter alguma coisa nova ao cabo dessas rejeições múltiplas e por vezes fatais. Ambos atiram lenha à fogueira, aquecendo-se ao calor de coisas arrancadas à sua norma de vida: fogueira da existência ou fogueira do pensamento. Em muitos casos, ambas.

Vindo após séculos de filosofia catedrática, Nietzsche se revoltou violentamente contra a mutilação do espírito de aventura pela oficialização das doutrinas. E a seu modo foi um aventureiro, não só na existência agitada e ambulante, à busca de lugares novos, emoções renovadas (como alguém que necessita atritar-se com o mundo para despedir faíscas de vida), mas também no pensamento, à busca de ângulos novos, posições inexploradas, renovando sem parar as técnicas do conhecimento. A intervenção feliz de um gênio familiar impediu sempre as suas  tentativas de amarrar as idéias em sitemas amplos e fechados.¹ Exprimiu-se de preferência em trechos breves, aforismos e cânticos, a fim de que tudo o que borbulha não fosse canalizado pelo desenho geométrico dos tratados; e para que a filosofia não renunciasse ao privilégio da permanente aventura, a troco da estabilidade que se obtém fechando os olhos ante a fuga vertiginosa das coisas. O tipo de pensador nietzschiano é o Peregrino, o Wanderer, cuja sombra se projeta pelos quatro cantos e nunca vende a alma ao estável, ao tranqüilo, porque deseja manter-se fiel ao desconhecido, enfrentando-o com a coragem da aventura. A mencionada página final de Humano, Demasiado Humano (1ª Parte) define este repto permanente da filosofia, e é das mais belas que se escreveram sobre o destino do pensador, rejeitando a segurança ilusória de que se nutrem os homens médios, para não permanecer de olhos baixos, cego em meio à vida que estua no desconhecido, oferencendo aventuras que glorificam e consomem:

"Quem atingiu dalgum modo a liberdade da razão não se pode considerar na terra outra coisa que um Peregrino, embora não um viajante rumando para uma meta final – pois esta não existe. Contemplará e terá os olhos abertos para tudo que acontece no mundo; não ligará o coração em definitivo a nada de único; deve haver nele algo erradio, pois a sua alegria está no mutável e no inconstante. Por certo cairão noites penosas sobre um homem desse – quando estiver cansado e encontrar fechadas as portas da cidade, que lhe deveria dar repouso. Pode ser, ainda mais, que o deserto chegue até a elas, como no Oriente, e as feras ululem, ora perto, ora longe, e um vento forte se eleve, e os salteadores lhe roubem os animais de carga. Desce então uma noite terrível, como um segundo deserto no deserto, e o Peregrino se sentirá exausto no coração. Quando o sol levantar, abrasando como a divindade da ira, abre-se a cidade, e nas faces dos habitantes ele verá talvez mais deserto, mais sujeira, mais embuste e mais insegurança do que fora de portas – e o dia será quase pior que a noite. Isto pode, na verdade, ocorrer a um Peregrino; mas depois virão, como recompensa, manhãs deleitosas, noutra paragem e noutro dia, onde, através do dilúculo, verá bandos de musas bailarem perto, na névoa das montanhas; onde, em seguida, quando passear à sombra das árvores, na serenidade da manhã, cair-lhe-ão, dentre os ramos e a folhagem, coisas boas e claras, dádivas dos espíritos livres, que se acomodam bem, como ele, nos montes, florestas e solidões, e são, como ele, de maneira ora alegre, ora pensativa, peregrinos e filósofos. Oriundos do mistério da madrugada, pensam no que pode fazer tão pura, luminosa, jovialmente transfigurada a fisionomia do dia entre a décima e a décima segunda pancada do sino: andam a buscar a Filosofia da Manhã".

¹ Hoje, após os trabalhos e a edição de Karl Schlechta, sabemos com certeza que a Vontade de Potência, como foi publicada, sobretudo nas últimas edições, chmadas completas, não passa duma ordenação arbritária de fragmentos que não haviam sido destinadas a qualquer obra sistemática. O "sistema" e suas implicações capiciosas nasceu do interesse fraudulento de sua irmã e respectivos colaboradores, ingênuos ou cúmplices conscientes. (Nota de 1959.) 

Sob esta roupagem alegórica, sob a graça deste estilo a que a tradução retira o aspecto por assim dizer miraculoso, Nietzsche é eminentemente um educador. Propõe sem cessar, como aqui, uma série de técnicas libertadoras, levando-nos ao paradoxo de pensar, como Gide, nos Pretextos, que a sua "influência (…) importa mais que a sua obra". Talvez seja verdade, grata a quem exclamou na Gaia Ciência: "Para que serve um livro que não for capaz de nos transportar além dos livros?". Os seus conduzem para o terreno da aventura espiritual; livros de movimento, que têm um pacto misterioso com a dança, elemento chave do seu pensamento: "Há escritores que, pelo fato de representarem o impossível como possível, e falarem do que é moral e genial como se ambos não passassem de fantasia, capricho, provocam um sentimento de alegre liberdade, como se o homem se pusesse sobre a ponta dos pés e, graças a um júbilo interior, fosse obrigado literalmente a dançar" (Humano, Demasiadamente Humano).

É claro que os seus livros, que ensinam a dançar, não emanam de um filósofo profissional, mas de alguém bastante acima do que nos habituamos a conceber dste modo. Como poucos, em nosso tempo, é um portador de valores, graças ao qual o conhecimento se encarna e flui no gesto de vida. "Aqui, a certeza é um jogo; dir-se-ia que o conhecimento encontrou o seu ato, e que de repente a inteligência aceita as graças espontâneas" (Valéry).

Há, com efeito, seres portadores, que podemos ou não encontrar, na existência cotidiana e nas leituras que subjugam o espírito. Quando isto se dá, sentimos que eles iluminam bruscamente os cantos escuros do entendimento e, unificando os sentimentos desparelhados, revelam possibilidades de uma existência mais real. Os valores que trazem, eminentemente radioativos, nos trespassam, deixam translúcidos e não raro prontos para os raros heroísmos do ato e do pensamento. Geralmente, ficamos ofuscados um instante quando os vemos e, sem força para os receber, tergiversamos e nos deviamos deles. A opacidade se refaz, então, a mediania recobra o domínio e só resta a lembrança, de efeitos variáveis. Os coevos lobrigavam chamas do inferno na barra da túnica de Dante; nos nossos olhos resta igualmente a nostalgia do reino perdido, como no soneto admirável de Antero de Quental:

 

E assentado entre as formas imperfeitas,

Para sempre fiquei pálido e triste.

 

Os portadores, que eletrizaram um instante, por via da participação misteriosa de que fala Nietzsche, esses, continuam, como ele próprio continuava, irrequietos e irremediáveis.

Entretanto, embora nos iluminemos apenas um instante e os portadores sigam, o que seria da vida e do pensamento se não houvesse oportunidades semelhantes? As idéias e valores existem ante nós como alvos inatingíveis, e o nosso destino é tender a eles. Por isso a vida é uma tendência sem fim, excetuados os momentos de plenitude que suspendem a corrente do tempo. Não obstante, enquanto permanecermos de um lado, e os valores de outro, o esforço e a lucidez da nossa visão serão mais ou menos frouxos. Na vida, só sentimos a realidade dos valores a que tendemos, ou que pressentimos, quando nos pomos em contato com certos intermediários, cuja função é encarná-los, como portadores que são. A abstração e o sentimento adquirem vida (la connaissance a trouvé son acte, diria Valéry) e somos capazes de sentir plenamente, viver os valores. Ao contrário da vida, que dispersa, os portadores condensam e unificam extraordinariamente; daí se imporem como um bloco e fazerem ver a vida como um bloco, que nos afasta por um momento da mediania e impõe uma necessidade quase desesperada de vida autêntica.

      

"Os homens necessitam constantemente de parteiras." A teoria do super-homem é o conjunto de técnicas necessárias, segundo Nietzsche, para formar estas parteiras de que fala. A profundidade do seu desconhecido humanismo provém da decisão fundamental de nada conceber na vida se não for como encarnação de valor, corporizado na presença humana. E para encerrar estas notas sobre um dos maiores portadores do nosso tempo, nada mais oportuno que a citação de um de seus escritos de mocidade: "Os gregos eram o oposto de todos os realistas, porque, a falar a verdade, só acreditavam na realidade dos homens e dos deuses, e consideravam a natureza inteira como uma espécie de disfarce, de mascarada e metamorfose desses homens-deuses. Para eles, o homem era a verdade e essência das coisas; o resto não passava de fenômeno e miragem". Na nossa época, ao se abrir a primeira fase da história em que será preciso reorganizar o mundo sem apelo ao divino, o que se poderia dizer de melhor para instalar o homem na sua humanidade?… Recuperemos Nietzsch.

Fontepesquisada: NIETZSCHE VOL.II – OS PENSADORES. 

POSTED BY SELETINOF AT 5:44 PM